domingo, 23 de setembro de 2007

São as noites de Lisboa

O autocarro semeado de gente, entre eles uma distância de segurança e de classe. A mulher gorda e desgrenhada com cheiro a lixivia nas mãos, senta-se nos bancos da frente a ler uma qualquer revista de telenovelas. A colega, mais nova, também com cheiro a lixiva, tenta conversar do banco de trás...
Nos bancos perto da porta de saída, estão dois homens com cheiro a rua, cabelos sebosos, barbas sem memória da última vez que foram feitas. Um está calado e com vontade de se manter assim, o outro porém não deixa, vai sempre fazendo perguntas no meio do discurso para se certificar que é escutado com atenção. Conta que um segurança lhe bateu, atirou-lhe um caixote de lixo deixando-o ferido durante meses. Sem parar a conversa, sai do autocarro na mesma paragem que eu.
No céu vêm-se os raios que iluminam por breves instantes a cidade em estado pré comatoso. A chuva começa a cair irregular, a medo, conquistando rapidamente confiança com os corpos que apanhou desprevenidos. As poucas pessoas que estão ainda na rua, abrigam-se nos toldos dos cafés quase a fechar, correm por debaixo das varandas.
A meio da avenida vejo coletes reflectores, um deles tem uma câmara de filmar, apontam para a porta recolhida de uma loja da moda, iluminam o corpo deitado, coberto com papelão e trapos velhos... Os outros fazem perguntas, ouvem, distribuem sopa e sandes...
Passei rapida pelo cenário, espreitando o momento de glória daquele dono da cidade. A loja podia ser a de todas as meninas com boas mesadas, mas o abrigo, a cama, era dele. Quem tirava partido da arquitectura da entrada da loja era ele, e não os saltos altos que a atravessam durante a hora de almoço.

domingo, 16 de setembro de 2007

O gato O gato negro enrola-se em si mesmo, na sua negrura. Dorme e sonha negros sonhos. Satisfeito com a sua vida de ausência de cor, na certeza que irá acordar apenas para mudar de posição, lamber as próprias patas com carinho, mergulhar de novo na escuridão do sono e dos sonhos. O gato negro podia não ser gato, podia ser gente, com cor ou sem ela, se é que é permitido atribuir cor às gentes. Acontece que escolheu ser gato, com o privilégio de escolher a cor. Escolheu ser negro, apenas negro, para se confundir com a noite, com a ausência de luz. Da mesma forma, escolheu ser gato e não outra coisa qualquer, apenas um gato. Os gatos escolhem os donos. O gato negro foi escolhido e não se importou. Durante o dia vagueia pelos telhados da cidade, espreita as gentes que passam a correr lá em baixo… pequeninas, aquelas gentes. Não precisa de apurar muito o seu ouvido para perceber que os seus corações batem a mil à hora, sem terem sequer consciência dessa batida. Quando chega a noite, regressa a casa do dono, onde bebe água fresca, mastiga ração seca ruidosamente, lava-se e por fim deita-se. Se lhe quiserem fazer uns carinhos pelo meio aceita, senão, o carinho que dá a si próprio basta-lhe para se sentir feliz. Cuida-se e isso fá-lo sentir-se bem. Um dos seus sonhos preferidos é com o Sol. Sonha que o Sol é uma gata enorme, quente, brilhante, que o abraça e se deixa possuir vezes sem conta, sem dor, sem aquela dor com que as fêmeas se costumam fazer pagar por escassos momentos de prazer. Sonha que possui o Sol durante um tempo sem fim, com prazer continuo, regular, como um êxtase que não começou nem acabará nunca… e sorri levantando os bigodes. (to be continued...)

Skhízein...

Processo filosófico através do qual se parte dos efeitos para as causas... Este blog é sem dúvida um efeito de uma causa que não vou revelar para já, um dia espero entender. Esquizo podia ser outro nome para este blog...dualidade, divisão...