sábado, 27 de outubro de 2007

O Escafandro e a Borboleta

Começamos por pensar que os milagres da medicina nos proporcionam um Inferno ao prolongar-nos a vida. A primeira frase que o narrador consegue soletrar seleccionando as letras do alfabeto com o piscar de um olho é: - Je veux mourrir. - Ajeitamos o rabinho na cadeira como quem espera que o filme trate sobre a eutanásia, com um final misericordioso. Mas não, o facto é real e na realidade falamos menos e conhecemos menos, os casos em que o debate não é sobre a escolha entre a vida e a morte mas sim sobre o aprender a viver uma não-vida tal como a concebemos. De cereza que imaginamos a nossa própria morte, umas vezes mais trágica, outras mais doce e edificante, mas nunca, nunca a imaginamos como humilhante, numa posse torcida e babada. Mesmo se nos imaginarmos incapacitados, imaginamo-nos direitinhos, inexpressivos, rosto inerte e em paz, até com uns quilos a menos e mais esbeltos.
Afinal, os milagres da medicina não antecipam o Inferno, impedem-nos de aceder de forma instantanea ao paraiso tal como o concebemos, sem remorso, sem dor e belo. Com o prolongamento da vida, talvez nos estejamos a habituar a ter uma segunda oportunidade para nos tornarmos melhores pessoas, para aprendermos a ter beleza interior num corpo distorcido e sem vontade própria, procurando o que de melhor há na nossa memória e na nossa imaginação, reféns de um escafandro libertando uma borboleta.

domingo, 14 de outubro de 2007

Está aí alguém?...Talvez...

Pergunto-me se está aí alguém, mas ninguém responde. Provavelmente está... ou talvez não. As palavras dançam como uma bailarina num ginásio abandonado, sem música, sem audiência. Foram lançadas pelos ares, umas com uma graciosidade de menina, outras num arremesso de colera que só um animal selvagem enjaulado consegue exprimir. Penso duplicar-me para me acompanhar, para me responder a mim mesma. Talvez... Como quando brincava em pequena, fingindo longas viagens em combóios que nunca tinha visto, apertada entre a bagagem, abraçando a minha galinha de estimação no colo, embrulhada numa manta. A viagem nunca terminava, pois naturalmente o seu único destino era dali para longe, muito longe, tão longe que nunca soube para onde. Ou quando rebolava na erva fresca e húmida na Primavera pelo declive do quintal. Aquele quintal era o mundo, redondo e tudo. Tentava rebolar até cair no outro lado, só para ver o outro lado do mundo. Talvez o outro lado do mundo fosse como os espelhos em que me olhava e me procurava, tentando descobrir se aquela era a mesma ou outra. Aquela que eu encontrava sempre que me tentava lembrar de mim mesma o mais no passado possível, encontrando na memória uma estrada de curvas sinuosas, rodeada de árvores e escuro, muito escuro...