...
A campainha toca e eu estou ainda meia despida. Abro e espero. Ninguém. Vou para o banho. Estou apenas meia vestida quando toca de novo a campainha. Abro e espero. Ninguém. Deixo-me cair sobre a cama meia desfeita. Completamente desfeita estou eu. Vivo a vida meia vestida, meia despida. Abro a porta sempre que tocam à campainha. Nunca é ninguém. Neste ponto digo-me: " - Alguém anda a brincar contigo. Para a próxima não abras." Mas pergunto-me... e se de nunca a abrir me esqueço um dia que tive uma porta que podia ser aberta? As paredes acabarão por me deixar meia esmagada, meia despida, a meio caminho de uma janela com vista para o rio...por fim meia morta, porque agora estou meia viva.
...
sábado, 12 de junho de 2010
um bocadinho do que escrevi ontem...
"As lojas estavam fechadas, no banco de jardim perto da paragem de taxis, já aguardavam pela ceia os sem-abrigo do costume. Tão cedo? Mal amanheceu! Talvez agora também distribuissem pequeno almoço nas carrinhas de voluntários. Isso era bom!
Resolveu esperar pela abertura das lojas, só para entrar lá dentro e sentir o toque das roupas novas, o cheiro dos perfumes. Desceu a Guerra Junqueiro, e reparou que o sem abrigo que faz a cama junto à Zara ainda não tinha arrumado a "cama". Quando chegou ao fim da rua, a luz começou a escassear. Fez-se noite. Afinal a cama já estava feita. Na Almirante Reis, saiam dos autocarros mulheres com cheiro a lixivia, apressadas de regresso a casa. Em redor dos sem-abrigo, câmaras de filmar, pessoas com coletes reflectores a oferecer a única refeição: a ceia, composta do pão que mais ninguém quer comer e bolos fora de prazo.
Desconcertada, voltou para casa, não sem parar na Praça de Londres por debaixo de uma árvore iluminada, aí parou, ergueu o olhar para contemplar as pequenas luzes, semi cerrando os olhos, só para se sentir parte de um firmamento onde não existe amanhecer."
quinta-feira, 10 de junho de 2010
Hoje choveu e fez sol. As bruxas comeram pão mole.
Festim macabro nas ruas molhadas, danças sem nexo.
Feitiços foram lançados, fogo fátuo indiferente à chuva cegava quem os olhasse.
O mundo escondeu-se, protegeu-se nos centros comerciais...
Lá dentro livraram-se do dinheiro, encheram-se de inutilidades,
compraram sorrisos, venderam angústias.
Esqueceram a chuva, as danças de bruxas, o fogo fátuo e mesmo sem o olhar cegaram,
O beijo que o Sol lançou às àrvores, devolveu o brilho às folhas,
tremeram as folhas de prazer, acordaram as aves,
E amornou a terra que se fez meu leito.
sábado, 5 de junho de 2010
Cio do amanhecer
Recordo o caminho do teu corpo e nele me perco.
Saboreio o teu doce até se tornar sal.
No aperto dos teus braços segredo-te o meu folego
Dedilhas-me até ser eu própria as tuas mãos,
desfazer-me no prazer que somos,
Nesta Primavera em que me aqueces,
serei a tua viola, o teu gemido de prazer,
o teu fado vadio.
Canta-me que me levas a voz,
roubas-me os verbos e enches-me de vida!
terça-feira, 1 de junho de 2010
Lucky Day
"Ladies and gentlemen. Harry's Harbour is proud to present, under the big top tonight. Human Oddities. That's right!"
O palhaço multicores avançou para mim. Pernas curtas, tronco largo, cara pintada de vermelho e preto. Roupa de cetim vermelha, azul e branca.
Ria-se. Ria-se de mim porque a esquisita era eu.
Toma um ar sério, bebe um shot de vodka ao som de uma polka e fala:
- Minha querida, tens tudo para ser tudo! Aponta uma cova de terra fresca no chão. Ao lado uma lapide tombada e inacabada. Continua, olhando nos olhos: - Mas não és! E ri, ao principio gargalhadas contidas até que as solta na sua plenitude - Mas não és! - Estas palavras são a sua gargalhada no mundo inteiro onde trompas e trompetes, realejos e gaitas de foles tocam em desalinho.
domingo, 30 de maio de 2010
Alfama
Aldeia dentro da cidade, vaidosa de tão fotografada.
Respira-se o Tejo e o carvão ardente nos pateos.
Vai-se a luz devagarinho, a noite vai beijando com gozo o rio, abrigando aqueles que não têm para onde ir.
A música de cada um apenas concorda no refrão do 28 ao atravessar Lisboa.
Cada um segue um caminho, cada um procura o seu formigueiro, guarda o seu segredo de noites sós e dias esquecidos, guardando na alma a esperança desta cidade não esquecer o amor que lhe temos, apesar de espelhado no rosto.
À porta fechada
E se fosse de novo aquele dia em que te vi descer as escadas lançando um olhar de despedida?
Se fosse de novo o dia em que o Sol delegou funções em pequenas lamparinas imitando o seu próprio brilho?
Hoje não entendo palavras de amor, hoje não acredito no tempo, nem em promessas.
Hoje não espero e parto de vez, o que sobrar não serei eu... e tu nunca mais.
sábado, 29 de maio de 2010
180/106
Brinco. Porque foi a brincar que fui feita. Brinco vivendo, vivo brincando, porque nada disto pode ser a sério. Respondo neste jogo o que o jogo espera de mim, apenas porque receio perdê-lo de vez. Acredito nas promessas que nunca se irão realizar, um dia a minha memória confusa acreditará que as vivi. No fim, brincarei feliz com o sopro irrepetível. Há que incentivar o comércio tradicional e mesmo ao lado da farmácia, temos a funerária, que também tem direito ao negócio.
terça-feira, 25 de maio de 2010
fuga
Fujo de mim para não esperar por ti. Páro o tempo para não o contar. E espero.
Calo o teu nome, grito, sufoco o eco dentro de mim (é ele que me faz bater o coração num compasso ternário). - É mais fácil fazer de conta a ouvir uma valsa.
Não há cama onde me repouse, não há abrigo onde possa recolher, só eu e o fim que rabisquei para mim.
Canso-me do cansaço da fuga, dúvido da dúvida do amanhã e dos dias depois de amanhã
Não tarda cairá o céu e ainda não encontrei onde me esconder.
sábado, 22 de maio de 2010
Agramonte
Passeava como quem foge da crueldade do erro que me levara àquela cidade, no cemitério de Agramonte. Procurava os meus, sabendo que não era ali que os encontrava. Passeava em passo de corrida, deixando para trás flores de plástico, velas derretidas, fotos desbotadas, frases de saudade eterna. Pisava o chão como quem pisa a própria vida, até me deixar tombar sobre a sepultura mais abandonada, nome apagado, coberta de terra tão seca que quase se abria. Ajoelhava e acariciava a gata preta e branca de ventre cheio de vida, sentinela daquele espaço abandonado. O guarda percorria os corredores de silêncio, informando que estava na hora de fechar, era necessário sair. Atormentava-me a dúvida, seria para mim que falava? - Vamos lá menina! E eu agradecia a informação - afinal não era desta vez que eu ficava.
quarta-feira, 19 de maio de 2010
"Segredo para ser segredo não se conta"
Sempre acreditei num lugar onde pairam todas as palavras ditas. Imagino-as girando sobre si mesmas, formando frases confusas e sem sentido.
Nesse lugar não há som, só a ideia da palavra. quem as olhe entende-as.
Mergulho nesse lago sem principio nem fim.
Vejo-me nas palavras que nunca ouvi, envolvem-me num único nó, asfixiam-me e assim me deixo ir, num misto de prazer e de terror.
Com as minhas últimas forças, quebro o silêncio e ouve-se pelo universo inteiro uma única palavra: aquela que te irei segredar.
domingo, 16 de maio de 2010
Le Petit Prince (Antoine de Saint-Exupery)
"Tu n'es encore pour moi qu'un petit garçon tout semblable à cent mille petits garçons. Et je n'ai pas besoin de toi. Et tu n'as pas besoin de moi non plus. Je ne suis pour toi qu'un renard semblable à cent mille renards. Mais, si tu m'apprivoises, nous aurons besoin l'un de l'autre."
C'est trop tard....
Amanhecer sem cor
Todos os dias pinto o céu. Têm-me faltado cores, tenho-o pintado sem cor, negro, um meio-dia de noite sem luar.
As cores fogem de mim, insurgiram-se contra a minha criação de dias melhores. Procuram novas telas, e nem o chamamento da passarada nas árvores as convence de que aqui a pintora não é assim tão pouco merecedora. Vejo-me assim, perdida num tempo sem fim, paleta e pincéis nas mãos, perante uma tela nua, onde só se espelha a dor da solidão, a angústia desta noite que não há meio de terminar.
Estúpida, acordo na manhã seguinte e repito os rituais, esperando que esse seja o dia em que me esborracho no muro dos outros, como insecto nojento e insignificante.
sexta-feira, 14 de maio de 2010
quinta-feira, 6 de maio de 2010
Amigos! Fechou a feira! Podem partir, lambuzados de algodão doce, peganhentos de açucar e tontos de música de realejo.
Vejo um, de rabo gordo, a fugir, ainda lambendo os dedos e olhando de soslaio a barraca dos tiros.
A mulher oxigenada de espingarda na mão, fazendo uma bola de pastilha, aconchega as mamas no decote.
Vão levar o corpo à terra.
Já estão prontos os palhaços, com torrões de terra para atirar ao caixão de pinho. As trapezistas abraçam as flores que irão lançar graciosas.
Na barraca da ginginha, emborco mais uma ou duas, vai ser muito tempo sem sol, uma cova espera por mim. Abraço os meus amigos deixando no ar o bafo a alcool. Quem não sabe diz que é cheiro de cadáver. Aos tombos lá vou, os coveiros esperam com ar revoltado a quebra da tolerância de ponto pela visita do Papa. - O pessoal não tem dia para morrer e o cheiro não se aguenta.
segunda-feira, 3 de maio de 2010
"Afinal, quem és tu, romeiro?
Ninguem!"
Sendo tanto, numa palavra passamos a nada.
Diz-se louco, completamente louco, daquele que tem a lucidez estampada no rosto.
Cego. Chama-se cego ao que vê para além de tudo, além de todos e que nos ignora nesta pequenez.
Afinal, quem és tu, Ana?
Quase tudo e afinal de contas ninguem.
Louca por nada e cega pela escuridão em que me deixo mergulhar.
quinta-feira, 29 de abril de 2010
Madrugada de Abril - Século XXI
E se eu não dormir nunca mais? E se a vida passar a ser uma noite permanente, sem sonhos nem pesadelos?
E se um dia acordar no meio de nada, vestida de coisa nenhuma, destinada a caminhar para sempre nos Centros Comerciais à procura de roupa para vestir?
Vou passar a c0leccionar cartões de cliente e talões de desconto, a pedir brochuras nas agências de viagens e a parar em todas as montras de ourivesarias.
Quando o corpo ceder ao cansaço, farei um colchão com as revistas de viagens sobre um banco de jardim. Cobrir-me-ei com as roupas da ultima moda Primavera Verão e inventarei um jogo de sueca, com a passarada , as cartas serão os cartões de loja e cupões de desconto. Nesse jogo será apostado e decidido qual o rouxinol que me irá manter acordada até à Liberdade voltar...Se eu chegar a adormecer...
Cantava minha mãe: "Nossa Senhora disse disse, enquanto a videira subisse , não dormisse não dormisse" - assim o rouxinol estava atento e não se deixava prender pelos galhos da videira que se enrolariam fatalmente na sua patinha durante a noite.
domingo, 25 de abril de 2010
The Wall
Passa o tempo e não sei se passo com ele. Passo eu e ele fica. Quem passa não chega a lado algum, quem fica vive. Vai decidir o tempo quem fica e quem passa. Falo, mas o tempo é surdo, grito mas a vida ignora-me: tenho que conseguir ignorar o tempo e o silêncio. Estendo a mão durante a queda, procurando outra que não está lá, ou me deixo cair ou me agarro com as próprias unhas a esta parede que inventei, sem abraços, sem beijos nem afectos. Por fim, tudo o que resta é seguir os vermes e encontrar o corpo.
segunda-feira, 19 de abril de 2010
Sou uma bola de sabão. Vinda não se sabe de onde. Leve, leva-me o vento. Rebolo sobre mim mesma, num brilho de nada, em cor nenhuma . Odor a sabão. Chego acima da atmosfera, fora da terra, do mundo e das gentes. Enfrento tempestades de estrelas, guerras de deuses, nuvens de cinza vulcânica, desabamentos de glaciares e desmoronamentos de terra.
Existo enquanto me soprares de vida. Na noite em que deixares de me sonhar, faço-me naquilo que sou: umas gotas de água nas tuas mãos nuas de anéis.
terça-feira, 13 de abril de 2010
Humores nocturnos
Esta noite atirei os cobertores para o fundo da cama. Vesti-me à pressa, roupa de trazer por casa apenas e saí, sem me importar com a cama desfeita. Andei. Passei pela Mãe d'água, pelo Rato, Miradouro de São Pedro de Alcantara. Sempre a andar, a um ritmo de quem sabe muito bem para onde vai, sem cansaço. Desci a Rua do Alecrim, dei por mim na Rocha do Conde d'Óbidos e perdi-me exactamente onde me queria encontrar: na Ponte. Nao estava cansada, e estava num daqueles raros momentos em que sentia ser dona de mim. Subi ao cabo, o meu objectivo: atravessar a ponte pelos seus cabos principais, em equilibrio com a noite, sem medo, sabendo que uma queda, seria o mais digno a acontecer, já que do outro lado nada me esperava.
Acabei por acordar do lado de cá, onde nada me espera, onde quem espera sou eu e não sei bem pelo quê.
sexta-feira, 9 de abril de 2010
Para ti
Pudesse eu ser uma cidade inteira,
abarcar nos meus braços a sua luz e com ela adormecer-te nas tuas memórias tristes.
Deixar-te assim,
livre para chorar,
livre para partir,
livre para ficar.
Soubesse eu ensinar-te a contar as estrelas, mostrar-te aquela que brilha sempre, só para ti,
onde se guarda voz, o sorriso e o abraço
da alma de quem te fizeste gente.
Mas sou pequena...
quinta-feira, 8 de abril de 2010
"You must remember this... a kiss is just a kiss..."
Leva-me! Leva-me para onde as noites brilhem. Leva-me para um segredo tão secreto como o nosso amar.
Abandona-me depois, na memória deste conto, na berma dos teus caminhos, na encruzilhada das histórias que ainda não sabes, mas vais contar.
Deixa-me morrer assim esta morte invisivel, nos teus braços, num sorriso, num beijo, uma morte de desejo.
domingo, 4 de abril de 2010
Cansada dos dias
Quero correr pela estrada, sem medo, sem luz. Sentir-me sacudida pela velocidade que passa indiferente. Esquecer-me do corpo, do destino que não sei prever nem precaver.Deixar-me levar pelo impacto, ser projectada para o espaço e não voltar nunca mais.
quinta-feira, 1 de abril de 2010
segunda-feira, 29 de março de 2010
Pá!
Estou de férias. Pensei ir até Amsterdam para fumar umas ganzas até cair para o lado. Depois lembrei-me que não sabia para que lado devia cair. Para a frente? Não existe para a frente. Para trás? Nunca, nenhum estado de inconsciência me faria esquecer o pesadelo que fica atrás. Resta-me a esquerda e a direita. Politicamente nunca cairia para a direita, por muito forte que fosse a ganza. Para a esquerda! Sim para a esquerda... invariavelmente, onde nada nem ninguém me ampara a queda: "Alevantati pá!"
quinta-feira, 25 de março de 2010
Por mais que te sonhe, não te saberei de outra forma: um sonho. Dizes me ao ouvido palavras que não existem, vestes -me as cores inventadas no velho carrossel, contas-me histórias. Envolves-me nos teus braços em cheiro de algodão doce. É assim que durmo nestas noites, sob um sol que não pára de brilhar.
segunda-feira, 22 de março de 2010
Passeei em campos salpicados de papoilas. Bastava-me a sua cor de sangue e o toque macio que me levava por caminhos de seda que nunca conheci. Ensinaram-me a colhê-las, a dobrar as pétalas ao contrário, a arrancar os "cabelos" negros que lhe revelavam um rosto. As pétalas eram saias, o pé, o único apoio para a sua coreografia. Em segundos passavam de papoilas a bailarinas e em outros tantos passavam de bailarinas a cadáveres mutilados. Como é facil aprender a destruir os momentos de beleza e prazer.O que não conto é daquela papoila que mantenho escrita no meu peito, sempre inteira, sempre viva.
domingo, 21 de março de 2010
C'est trop facile de faire semblant
Fico em silêncio, fazendo de conta que serei ouvida. Esperando um dia em que o tempo me permita ouvir quem sou. Só ouve quem me quer, sou muda!
Tudo o resto é fazer de conta, enganos, ilusões, bofetadas pela pá de um moinho em fúria!
E eu? Quem sou? Amiga reles e ilegitima do tempo que sobra entre as ventanias.
sábado, 13 de março de 2010
OS
Partilhar uma chávena de chá Simples O chá O partilhar.
Partilhar uma chávena de chá com um amigo Simples O amigo.
Conversar em silêncio Contar histórias por inventar Apenas estar Apenas ser.
Verter lágrimas De lucia-lima O chá.
Sabor doce Travo a sal O amigo.
sexta-feira, 12 de março de 2010
nocturno em Sol
Soltou-se um grito na escuridão, acordou a cidade em sobressalto.
Estou só...
e não quero estar aqui!
segunda-feira, 8 de março de 2010
Mulher Con Sumo
A cada oferta e talão de desconto, amostra gratuita e voucher de spa, apetece-me responder com as palavras de António Gedeão, ditas de um só fôlego, bebidas de um só trago e cuspidas com orgulho...
Calçada de Carriche
"Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada."
quarta-feira, 3 de março de 2010
Dor iminente
Inventaram-se os ponteiros para marcar o tempo. Marcam o teu tempo. Impenetráveis, insensiveis à tua dor, sem denunciar o fim, marcham sem arrependimento. Sabes que vão parar... esperas que marquem o fim. Aquele minuto que acabaste de passar pode ter sido o último. Aquela lua cheia que inunda a noite, pode ter sido a tua última lua e o seu banho de luz a tua mortalha... que te abrace para sempre Victor!
domingo, 28 de fevereiro de 2010
I'm your private dancer
Pele de louça dourada, num demi plie eterno, feita de uma só peça, a pequena saia branca em tule, era a bailarina mais rigida no mundo, desprovida de movimento. Voltas e reviravoltas naquelas mãos de menina eram a sua coreografia.
A sua imagem reflectia - se no verde do olhar da menina, levantava -se o pano, o pequeno coração dava as pancadas que a anunciavam, a bailarina ganhava vida à boca de cena. O brilho das estrelas iluminava o seu rosto de louça, sorria, dançava, viajava no vento para além do palco que era a imaginação de criança.
A menina cresceu, partiu-se em cacos a bailarina, a saia de tule rasgou-se, desfez-se em fios.
A mulher recolhe os pedaços, passa a vida a moldá-los, a procurar a forma, o jeito do demi plie. Dos fios fez um novelo, eternamente tece de novo a pequena saia. Onde pára agora a coreografia de ternura e magia? Faz-se num dedilhar de poeta...
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010
Babushka
Hoje, abutres pairam sobre o teu corpo. Se o tempo se repetisse morrerias amanhã.
Lembras - te de me dizer que te matavas? Que até já tinhas escrito uma carta?
Amanhã morreste e eu estou triste como nunca. O que pretendes fazer agora, minha mãe?
Até hoje não encontrei a carta, mas a maldição ficou impressa no embrião...
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010
Um baile de máscaras
Tenho medo. Grito por ajuda sem emitir um som, um sinal. Sei que não há quem me proteja da fera, da sua beleza e força, do seu instinto selvagem.
Quero desaparecer daquela sala inundada de música, esconder-me onde o céu não me esmague ao cair.
Luto contra o cansaço dos desencontros da vida, escada rolante em sentido descendente que me cabe subir ao encontro - do quê?
domingo, 14 de fevereiro de 2010
Dia de S. Consumim
Ficava-te bem uma rosa vermelha, não hoje... num dia qualquer.
Uma rosa das que não se fazem nas lojas, vermelha do sangue derramado no parto. Uma rosa ainda na memória do orvalho, lágrima das noites febris e virais.
Uma rosa lembrada do odor, perfume libertado no amor.
Ficava - te bem uma rosa vermelha, feita de pétalas de veludo e folhas verdes... e espinhos.
...
Gosto de ver, no dia dos namorados, os mais velhos a comprarem flores. Não têm os olhos arregalados de consumismo, nao oferecem telémoveis nem perfumes caros. Oferecem flores com a calma e sabedoria que só o tempo ensina. Imagino a mulher que vai receber esse ramo colorido, depois de uma vida longa, dedicada aos filhos, à familia, uma vida de trabalhos e de espinhos.
O dia dos namorados devia ser comemorado depois dos sessenta anos, na condição de já se ter mais do que vinte de vida em comum... quem sou eu para saber o que é namorar?
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
Morte anunciada
...
chegou o tempo
e a espuma das ondas
passeia nas tuas mãos
Desfazem-se ao toque
são nada
são sal colado à tua pele
desfeito na água doce do teu banho
fita de cinema mudo
cenas que não filmaste
e desejos vãos
Apaga - o
Apaga o tempo, agora que é chama
Vela cedendo ao vento
queimando a carne e a pele
chegou o tempo
voltamos a ser papel de rebuçado, transparente e lambuzado
... poema mediocre e inacabado
chegou o tempo
e a espuma das ondas
passeia nas tuas mãos
Desfazem-se ao toque
são nada
são sal colado à tua pele
desfeito na água doce do teu banho
fita de cinema mudo
cenas que não filmaste
e desejos vãos
Apaga - o
Apaga o tempo, agora que é chama
Vela cedendo ao vento
queimando a carne e a pele
chegou o tempo
voltamos a ser papel de rebuçado, transparente e lambuzado
... poema mediocre e inacabado
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010
Futurologia
Escapa-se-me a vida como a areia, por entre os dedos.
A luz começa a extinguir-se, é a sua ausência que pinta as ruas por onde ando. Já todos recolheram ao calor das casas, ao brilho das vozes que os aguardam.
Sei que este caminho me leva ao silêncio, sei que um dia perderei o rosto neste jogo perigoso em que o tempo é senhor.
Nada me espera, ninguém me anseia.
Procuro-me no espelho partido, toco o fio de sangue ainda quente que escorrega pela minha imagem.
É o mais próximo de um toque humano que poderei sentir.
terça-feira, 26 de janeiro de 2010
Ensina-me
Ensina-me a dançar.
A tua voz será a minha musica, o teu corpo o meu.
Ensina-me as palavras,
as palavras que sentes, as palavras com que nos acaricias
as palavras que te saltam da alma... as mesmas com que me despenteias.
O silêncio! Ensina-me também o teu silêncio.
O silêncio do teu prazer, o silêncio com que me abraças.
Ensina-me o amor e a liberdade,
guardando na nossa história o sabor
e o cheiro
deste amor.
sexta-feira, 22 de janeiro de 2010
Há dias assim
A lâmina beija o branco da pele, tornando-a vermelha. O rio desenhado pelo vermelho do sangue desagua-me na alma.
A dor fina e ardente penetra a carne e invade-me os sentidos. Acalma aquela dor que me mora na alma sem tempo.
A realidade torna-se turva, as linhas dançam à minha frente e as cores perdem-se. Vai-se o tino e o sopro de vida torna-se débil.
A dor torna-se maior que o golpe, a dor torna-se maior que a alma.
quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
Bom dia!
Esta cidade às vezes fica inundada de um cheiro a couves podres. Para isso acontecer, teve que chover durante vários dias, o lixo do natal abandonado nas ruas, como deve ser para cumprir a tradição.
Saio à rua pela manhã e a primeira lufada de ar tem esse cheiro fétido, a couves com quinze dias de estufa. Contorno os ecopontos e tropeço nas caixas de aspiradores misturadas com restos de perú já com larvas.
Entro no café para o café "curto" a que não gosto de chamar "italiana" por me tirar do sério e metem-me à frente uma banheira cheia até acima com água de lavar chávenas. O empregado sorri mostrando as migalhas do pastel de nata que surripiou na copa. - Pois é... o Natal já passou...um novo ano... - e faz estalinhos com a lingua.
Corro dali para fora, atravesso no verde ignorado por uma carrinha, tento desviar-me da carrinha, mas do outro lado já está quase em cima de mim um aprendiz de macho latino (certamente miope) balbuciando - ah boa, sexy.... - quase no meu ouvido, deixando cheirar o seu hálito a alho... desvio -me dele, prefiro a carrinha que sempre deve ter seguro de acidentes.
Por fim chego ao trabalho, pensativa... devia tomar mais um banho.
terça-feira, 12 de janeiro de 2010
Lume de chão
Lembro o desejo de uma fogueira, a luz de brasas que desfazia brincando, o cheiro a petróleo nos candeeiros, a cafeteira de ferro sobre o tripé.
Livros, livros de histórias, a história do vento. O vento em forma de assobio, levando consigo as sementes lançadas à terra, as roupas estendidas.
Lembro o calor do lume, as vozes murmurando contos de bruxas e encantos, o cheiro do leite acabado de ferver, a hora de dormir. Os lençóis de linho com cheiro de sabão e os medos... homens do saco e bichos papões.
Lembro o acordar com o frio no rosto, o cheiro do chocolate que o pai de madrugada pousou sobre a almofada. E depois... a luz, os risos, as manhãs lavadas e serenas num alentejo perdido.
sábado, 2 de janeiro de 2010
Acordei de celofane. Fina, transparente, quase invisivel. Pronta a ser amachucada e atirada para o chão. Quem olhasse ainda via as manchas de melaço em mim, do rebuçado arrancado à pressa e com gosto. Assim de celofane amachucado rebolei pelas tábuas inseguras do cais, empurrada pelo vento da manhã. Crianças passaram por mim, jogaram e fintaram para esquecer correndo depois em direcção à gaivota que os observava antes de voar para longe. Foi de celofane que deixei o vento levar-me para longe, planando sobre o rio... sem medo da queda.
Subscrever:
Mensagens (Atom)