sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Meio dia

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A campainha toca e eu estou ainda meia despida. Abro e espero. Ninguém. Vou para o banho. Estou apenas meia vestida quando toca de novo a campainha. Abro e espero. Ninguém. Deixo-me cair sobre a cama meia desfeita. Completamente desfeita estou eu. Vivo a vida meia vestida, meia despida. Abro a porta sempre que tocam à campainha. Nunca é ninguém. Neste ponto digo-me: " - Alguém anda a brincar contigo. Para a próxima não abras."  Mas pergunto-me... e se de nunca a abrir me esqueço um dia que tive uma porta que podia ser aberta? As paredes acabarão por me deixar meia esmagada, meia despida, a meio caminho de uma janela com vista para o rio...por fim meia morta, porque agora estou meia viva.

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quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

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Antes sequer de formar uma letra, risco, risco, risco, até se tornar claro o ruído do bico da caneta a raspar o papel. Não me interessa se a tinta é preta, se o papel é azul ou branco. Quero ouvir o raspar do bico da caneta no papel. Rasga-se a folha, não aguentou a força e a raiva contida na escrita que nunca o foi, nem palavra, nem letra, nem rabisco. Atiro a caneta contra a superficie dura da mesa, faz ricochete e cai ruidosamente no chão. Piso-a, esmago-a, não vá ela ganhar vida e escrever o que lhe vai na alma. Amachuco o papel, a folha fica amassada, uma bola que atiro contra o espelho partido. Mais uns estilhaços caem, ainda sobram uns tantos para outras expressões de raiva ou descrença. Fica o silêncio, contado pelo ponteiros do relógio desacertado. Não conto o tempo, não conto o tempo que passou, não conto o tempo que falta para um qualquer número redondo destinado a contar o tempo que te levou... que me levará a ti... que não me responde por que já te não tenho.

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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Solsticio de Inverno ou a Festa dos Loucos ou o Natal

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A noite mais longa chegou por fim. Fadas e duendes dançaram à luz da lua. Fez-se uma fogueira e aqueceram-se os corpos. Dançou-se sem descanso numa noite sem fim. Foi assim o principio, os loucos tomaram o poder e inventaram um novo inicio: a esperança de uma vida nova. Homens e mulheres trocaram as vestes e os sexos, dançaram com os loucos, beberam com os centauros e os unicórnios. Quando a noite sem fim chegou ao inicio de um novo principio, apagaram a festa, dormiram no chão e acordaram no esquecimento.

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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

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Comprei-me flores esta manhã, cheiro de ti
sonhei-te nu esta noite, comigo
sonhei-te nesta cama, ela sabe-te
o sabor dos teus contornos, teu corpo

comprei-me flores esta manhã, cheiro de ti
desejei-te mais de mil vezes, nos meu braços
desejei-te dentro da minha roupa, quente
o cheiro de ti abrindo caminho na carne

comprei-me flores esta manhã, nascidas de nós


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sábado, 18 de dezembro de 2010

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Pois que se faça o Sol e o Vento
                              e que se varra o lixo das ruas
Pois que se ofereçam laços e papéis 
                                     e se embrulhem as crianças nuas
Pois que se esvaziem os hospitais e se pinte uma Noite
                                              e se faça uma estrela com pedaços de pincéis
Pois que se aqueça a cama de papelão e Esquecimento
                                                     e se sirvam sopas e melodias
Pois que me deixem gritar bem alto o Lamento
                                                     e me calem com sonhos e azevias
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sábado, 11 de dezembro de 2010

Paris, je t'aime!

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Meu amor
Meia mentira, meia verdade
não és meu... amor
és o segredo da liberdade

Meu amor,
Meia mentira, meia verdade
és o amor, o que sabemos de cor
largado no areal pela tempestade

Meu amor
Meia mentira, meia verdade
és amor, migalha levada no vento
vagabundo inventado da minha cidade



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sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Espelho meu

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Hoje o espelho nada reflectiu. Deixou-se ficar ali, a olhar para mim, sem que eu pudesse retribuir o olhar. Vazio, o espelho. Atrevi-me a tocá-lo, as pontas dos dedos. Gelado, o espelho. Ali, derramei as lágrimas contidas numa vida. Salgado, o espelho. Ali, gritei as dores que me corroem a alma. Estilhaçado, o espelho.

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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

sábado, 4 de dezembro de 2010

a dor de cor

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... hoje acordei com o grito do silêncio

Era uma voz muda na solidão
uma cama vazia de corpos em turbilhão
Era a ausência, a falta de ar
E o meu corpo quebrado, a gelar


...hoje acordei sabendo a dor de cor

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terça-feira, 30 de novembro de 2010

Para comer com pão

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Era uma vez um moural de gado -  e eu ria, aconchegava-me nos lençóis de linho e no cheiro a lavado. 
Era um mocinho muito pequenino ainda, mas já era moural de gado. Guardava para mais de cem ovelhas! Numa tarde de sol, depois do almoço, deitou-se debaixo de um chaparro e deixou-se dormir. Aquilo é que era dormir! Já se punha o Sol atrás dos montes, quando acordou assustado, desatou a contar as ovelhas e... e não é que faltava uma! A chorar, voltou para o monte, a guardar as ovelhas. O patrão estava lá e deu pela falta de uma ovelha. Entre lágrimas e soluços contou: Ai... não me diga nada! Apareceu uma zorra, com os olhos a brilhar e os dentes aguçados, lutei contra ela, dei-lhe um tareão, mas mesmo assim... ainda levou uma ovelha - não me lembro do fim, esta devia ser a parte em que o sono me vencia.
Sonhava com montes verdejantes, com ovelhas a pastar e... antes que sonhasse com a zorra, já estava o sol a acordar-me, a frescura da tablete de chocolate colocada na minha almofada durante a noite... uma "comacompão", dizia o meu pai: se é para comer com pão faz bem!

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sábado, 27 de novembro de 2010

Esquecimento

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Perdi-me na manhã de nevoeiro. Não andei porque me esqueceu o andar. Nada vi por me terem esquecido as cores. Apenas voei, num voo solitário sobre a cidade. Senti gente e o calor dos lares. Apeteceu-me escrever sobre isso, mas como se me esqueceu o escrever?


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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Mar desfeito

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Em cada onda que se desfaz, fica vida no areal: pequenas algas, conchas e cavalos marinhos. Estrelas do mar, caranguejos e pulgas do mar. Esperam nova maré que as leve, ou a mão de uma criança que as reinvente numa tarde quente.
Em cada onda que se desfaz ficam as memórias, o sal de todas as  lágrimas, o sabor dos amores sonhados. O abraço de um amante desfeito, a busca de novo  abrigo cantado em forma de Fado, nova onda que o leve de volta ao leito.
Em cada onda que se desfaz, ficam os medos e os adamastores. Ninfas que inspiram poetas, vivas em odes e sonetos, fazendo sangrar os seus amores. Palavras que esperam nova onda que as leve ao silêncio colorido dos corais.
E voltar nunca mais.

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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Feita Borboleta

Se eu fosse borboleta, na minha curta vida, cruzava oceanos, contornava montanhas,
atravessava selvas e fintava a mais perigosa fera...
Só para, no fim, pousar nas mãos de um poeta...

terça-feira, 9 de novembro de 2010

sonho ruim

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esta noite sonhei o fim do mundo

acordei a memória do cheiro de

flores e o som da chuva

com que se lavam as ruas da cidade

deserta de risos
e de festa

lembrada que foi a fúria dos corpos

gritada a dor do sexo roubado
e escondido
esta noite o sangue

foi de lágrimas
e as lágrimas

gritos de dor

Sonhei que me levava o vento

e largava esmagada sobre os rochedos

esta noite lutei com moinhos em fúria

monstros da minha infância
e Medos

levaram - me nas ondas de um sonho
de nunca mais voltar
e morrer

não chegou a brilhar
o Sol desta madrugada

nunca mais se abriram os olhos

por se ter perdido a razão
de o ver

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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Sud Express

... ... Efémero este corpo roubado mensageiro violentado de dor perpétua perdido na morna caricia das tua mãos no despido prazer de me sentir tua na fúria do desejo no segredo de um gemido ... será a despedida amarga de uma vida breve acabada neste corpo trucidado ... ...

sábado, 30 de outubro de 2010

A dor chegou e instalou-se. Domina agora tudo o que sinto, não existe mais nada para além desta dor... Vou e não sei quando volto, mas farei tudo para a destruir, antes que ela me destrua a mim. Enquanto durmo, sussurem-me ao ouvido as coisas que dão sentido à minha vida: o nome dos meus filhos, o nome das minhas flores preferidas, o nome da cidade que nunca visitei...

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Rouxinol

- Sabes porque é que o rouxinol canta de noite? - Não! Porquê? - Os rouxinóis gostam de videiras, sabias? - Não. - Uma noite um rouxinol deixou-se dormir num galho de uma videira. Durante a noite a videira cresceu... e enrolou-se na patinha do rouxinol! Aflito, não conseguia soltar-se. Apareceu uma Fada e libertou-o da sua aflição, ensinou-lhe depois uma canção: " A Fada Madrinha disse disse, enquanto a videira subisse, não dormisse não dormisse!" Disse-lhe que cantasse essa canção toda a noite para não adormecer e não voltar a ficar preso, porque, de noite, a videira está sempre a crescer...

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Mal me quer

... ... Amanheceu triste o Sol num falso brilhar mundo de imagens Falsas memórias de um sonho mau Vazio em escala cinza Lágrima no olhar afogada em Dor e silêncio cinema mudo de Herói solitário na tela rasgada Apague-se o Sol desvaneça-se a Sombra desta que sou Nada mais que Alma perdida sem onde Morar ... ...

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Quero Quero muito, quero tanto Quero querer Quero-te vezes sem fim Quero sentir Quero sentir que sinto ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... que te sinto assim Perdido em mim

terça-feira, 12 de outubro de 2010

---------------- Perde-se o fio à meada, no meio de tanto ruído. É uma conversa que não é nossa que não se entende mas que não podemos deixar de ouvir. Um aparelho electrico e as suas ventoinhas, um animal que passa a correr, um coração que bate. Como soa a dor? Como soa a solidão na cidade? Soa a tanto tão sem sentido Soa à cor das lágrimas Sem cor De dor -----------------

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Tic Tac

23h00m Arranco-me às recordações de ti 24h00m Não preciso fechar os olhos para ouvir a tua voz, música dentro de mim 01h00m E se a realidade fosse possível? Se a imaginação é não te ter aqui agora? 02h00m A verdade é que te tenho 03h00m Escrevo a minha história na tua, a sangue do amor derramado 04h00m Atravesso a estrada do medo 05h00m Oiço-te tremer e hesitar, no prazer de dar e tirar 06h00m O Sol tarda em nascer 07h00m Rasgam-se as nuvens, e as cordas da tua guitarra 08h00m A loucura apodera-se de mim, quero-te como nunca 09h00m Sempre

domingo, 3 de outubro de 2010

de ti em modo menor

--- Hoje choves em mim Rasgas-me o corpo e as roupas deixas-me nua Só e sem ti Sabendo-te a lágrimas e a dor crua Fosse eu nuvem para te levar A esse céu que te espera só por te amar ---

sábado, 2 de outubro de 2010

Câmara hiperbárica

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Esmaga o meu coração, está nas tuas mãos. Deixa escorrer o sangue pelos teus braços E aperta, aperta-o sempre mais, até já nada restar, apenas sangue e dor. Cala o meu grito com os teus lábios e desfaz-me, como se desfazem os laços... "Tonterias" é o que me fazem as saudades do teu amor

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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A prova

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Acabarei... onde começa o mar.
Vivo como a maré numa força que me leva para longe,
envolta no frio odor que paira no ar.
Chama-me o abismo, as rochas fustigadas pelas ondas
o fascinio da escolha entre ir e ficar.
Serei onda, serei estrela do mar,
Cavalo marinho, coral ou apenas espuma
Ou sal...
Acabarei... onde começa o mar
sem vida ou SÓ... adormecida no areal
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sábado, 25 de setembro de 2010

Além ou os cogumelos mágicos

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Um dia o espelho cansou-se de esperar uma imagem que pudesse reflectir. Ganhou vida, tornou-se maleável, descolou-se da parede e percorreu toda a casa. Absorveu todas as imagens que encontrou, a casa deixou de existir, viu-se no meio da cidade. Numa corrida louca e trôpega de anos de inércia, percorreu a cidade, absorveu todas as pessoas por quem passou, os edifícios, os carros, o asfalto, pontes e barcos. Deu por si sem fôlego, debruçado sobre o mar... estava "onde a terra se acaba e o mar começa", a medo espreitou a linha do horizonte. Bastou para a absorver e quebrar por fim. Em mil pedaços tombou sobre as ondas iradas e fez-se areia levada pelas marés. Ninguém conseguiu explicar como ficou a imagem depois desse dia... sem horizonte.
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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Paris, a pantera... cada dia é um dia de descoberta. Sonha que um dia alcançará a própria cauda.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

"...if I die"

Quanto mais vivo, mais morro... basta de procurar o tal lugar onde o céu não cai. A angústia luta contra as suas amarras e deixa-as frouxas. Por mais que fuja, só o cenário muda, eu não saio do mesmo lugar, do mesmo momento. Morro devagarinho, em cada lágrima que não consigo soltar.

sábado, 18 de setembro de 2010

Voo para Nunca

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Eu fico. Fico sempre. A minha vida é um cais.
Debruço-me sobre o rio, quase escorrego.
Aceno e não sei se cumprimento, se me despeço.
Todos partem, todos voltam, eu fico.
Um dia hei-de mergulhar. Partir e não voltar.
Serei capaz de me deixar afundar?
Ou subo até ao ponto mais alto daquela ponte.
Não vou, não fico, não parto...
será suficiente para me fazer voar?
... ...

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Paris

... ... A Paris é uma pequena pantera. O seu corpo esguio é a noite mais profunda da alma felina. Ainda bébé, brinca, imagina caçadas, esconde-se de um inimigo invisível. Ensaia uma vida de liberdade numa selva que desconhece e descobre por debaixo do armário. Só os olhos existem no canto escuro onde se aninha, brilham na noite do seu corpo pequenino. Acariciada ronrona e rebola, enquanto a brincadeira não a desperta do turpor do mimo. Se tivesse outra vida, queria ser Paris, a pequena pantera... ... ...

domingo, 12 de setembro de 2010

De vermelho, sem censura

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Pintei as unhas de vermelho. Achei que ficava bem assim a minha mão a passear em ti... Na doçura de orgasmos incontáveis... sem fim
Pintei os olhos de verde. Para que mergulhasses em mim, o teu abraço no meu corpo Na força com que me desejas e desaguas ...por fim
Pintei o meu corpo da cor do teu. Só para nos confundir, entrelaçados e de prazer baralhados Na dança de tontos que inventamos... e por fim rir
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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Alentejo: o inicio e o fim (?)

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A casa onde nasci perturba-me. Foi também a casa onde morreu a minha mãe. As noites nessa casa são mal dormidas, os pesadelos mais reais. No último destes pesadelos... sonhei que estava a dormir (?!). Nas costas, por cima da roupa da cama, senti arranhar, como quem chama, como quem pede para olhar para algo. A primeira reacção foi de sobressalto e logo de descanso - Ah! É a Mia que se aninha! Logo um salto na cama! A Mia não estava ali, tinha ficado em Lisboa! Quis acender a luz, sem saber como respirar, sem saber como me mexer... acordei e senti que a Mia me fazia falta...Foi nessa mesma casa que percebi que um dia podia perdê-la.
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sábado, 4 de setembro de 2010

... ... Faltas-me neste Setembro, no ar que mal respiro, no vento arrancando o meu vestido Faltas-me na água doce que me ampara A tua pele acalmando a dor da minha quando se rasga. Faltas-me na cor do meu segredo, na alegria de um olhar na amargura de um desencontro Faltas-me tanto nesse teu encanto e desejo escondido de me cantar e fazer sonhar uma volta ao mundo só para te ouvir... (e)terno vagabundo ... ...

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

J'arrive!

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Esta noite sonhei-te, Paris! ... e voltei a sonhar...um sonho que só posso contar em letras pequeninas...
"Elle respirait, elle oubliait le froid, le poids des êtres, la vie démente ou figée, la longue angoisse de vivre et de mourir. Après tant d'années où, fuyant devant la peur, elle avait couru follement sans but, elle s'arrêtait enfin. En même temps, il lui semblait retrouver ses racines, la sève montait à nouveau dans son corps qui ne tremblait plus. Pressée de tout son ventre contre le parapet, tendue vers le ciel en mouvement, elle attendait seulement que son coeur encore bouleversé s'apaisât à son tour et que le silence se fit en elle. Les dernières étoiles des constellations laissèrent tomber leurs grappes um peu plus bas sur l'horizon du désert, et s'immobilisèrent. Alors, avec une douceur insupportable, l'eau de la nuit commença d'emplir Janine, submergea le froid, monta peu à peu du centre obscur de son être et déborda en flots ininterrompus jusqu'à sa bouche pleine de gémissements. L'instant d'après, le ciel entier s'etendait au-dessus d'elle, renversée sur la terre froide." (A.Camus)
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sábado, 28 de agosto de 2010

Ab sinto absurdo

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Não existo. Decidi que não existo, isso deve bastar para deixar de existir. Deixei de me reconhecer na imagem reflectida no vidro da janela do comboio que me levou para o exilio. Começo a sentir os efeitos de não existir: pois se não oiço, pois se não sou ouvida. Respiro o silêncio e fere-me o peito como lâminas. Aqui, no exilio, não há mais som nem silêncio, não há. É tudo! Enrolam-me as ondas negras de morte e levam-me, num comboio fantasma, povoado de fantasmas e... sombras. Na carruagem da frente vai o meu passado. Na carruagem de trás, como mercadoria de segunda, vai o meu futuro. Será deitado fora na próxima paragem. Eu... simplesmente porque já não existo, vou na carruagem do meio. Bastou-me decidir que não existo: pois se não vejo, pois se não sou vista.
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quarta-feira, 25 de agosto de 2010

... ... Esta noite ninguém está a salvo. Revelam-se os solitários, donos desta cidade de cartão. As ruas cheiram a urina, a vinho e vómito. Tropeças em lixo remexido e esquecido. Vem a água que tudo limpa, varre o cheiro, desfaz as camas nos recantos dos ministérios. Do cartão com que se faz esta cidade, ficam as gentes ... vestidas de trapos, ...sombras do tempo Apressa o passo, liberta - te! Manda-me calar! Não pares de correr! Não se sabe a intenção das sombras que te lambem o rosto. Libertaram-se os teus piores fantasmas, só para te verem tremer e gemer e correr como louca pela calçada. Não olhes para trás, não verás mais que o teu próprio rosto: assustado. Isso que te sai pela garganta... é um grito? ... a própria alma? ... um fado? ... uma desgarrada? É Lisboa, parida numa noite de lua cheia. ... ...

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

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Last night I was dreaming that I was dreaming of you Esta noite cheira-me a sonho, sabe-me a fruta, travo de canela como se em Agosto fosse Natal Não me deixam dormir as vozes e o risos, os talheres a brilhar, fantasmas que teimam em voltar... Que parva que sou, se hoje não é Dezembro e não é lume o que estou a atear...
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sábado, 21 de agosto de 2010

não há cá eco

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Hoje não amanhece nunca mais. Não me larga o amargo da noite... sem lua, sem estrelas. Todos partiram, para trás fico eu, olhando para nada, vazia até me perder de mim. Grito até não poder mais, não existe eco nesta cidade, perde-se o grito no vazio. Não amanso a vontade de gritar: Sempre! Nunca mais! Fazem ricochete em mim as palavras, já não as suporto mais! Nem ao silêncio... Alguém que me desenhe um final para este dia, rápido!
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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Cinzas

... _ _ _ ... ... ... Já não sonho. Sonho que sonho... e não durmo. Apagaram-se as luzes, só a solidão e eu, no escuro. Não sei se arranque este punhal que me atravessa o corpo, se me deixe assim... esperando o derradeiro sopro. Já não sonho. Sonho que sonho... e não durmo. Abandonaram-me as forças, o sangue e a vida. Deixo-me arrastar pelas ondas na força da maré... vazia Vazia a maré e o corpo levado para o fim do mundo Já não sonho nem sonho que sonho, apenas durmo. Passa a vida por mim, cavalos marinhos e algas coloridas Nem oiço ao longe as vozes na praia, os risos dos vivos . Apenas eu e o mar, apenas eu e a maré, apenas eu... sem vida...
... ...
... _ _ _ ...

Elogio da Preguiça

... ... Assisto à minha própria decomposição, passiva, esperando que ninguém note. Já se partiu o espelho que partilhava comigo este triste espectáculo mudo. Não fui eu quem o partiu... apenas se tornou frágil ao ser lançado pelo ar, aterrando no passeio da minha rua. Passaram dias e noites e não saí do meu lugar, sei que o sofá ganhou vida e espera fingindo-se morto por um movimento meu para me abocanhar e depois cuspir as roupas. Tudo acontece à minha volta sem a minha intervenção...o gato adormece em cima da televisão, deixando descair uma pata... depois a outra... para evitar a queda dá um pulo deitando ao chão com enorme estardalhaço dvd's e cd's. Ainda bem, foi a única forma de me acordar deste sonho estúpido ( e visionário?)... ... ...

domingo, 15 de agosto de 2010

Entre o preto e o branco

Há dias em que se vive a vida em escala cinza. Repousa - se assim o lado cognitivo do cérebro que distingue, rotula e cataloga a diversidade de cores que nos rodeiam. Não se perde nada, pelo contrário, pensamos e sentimos a vida com mais intensidade, não nos distraem as cores, não nos enganam. São esses os dias em que o ar que respiramos nos sabe melhor, a música que ouvimos nos encanta e transporta para outro lado de nós mesmos. Tudo o que faz parte da nossa vida continua lá, em escala cinza, e aceitamos, naquela paz doce de saber que a cor existe, apenas hoje o Sol não estava para aí virado.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Dança de roda

... ... ... Inventemos uma história, um conto de fadas, um romance, tanto faz Que não lhe faltem as princesas, os sapos e as bruxas malvadas Inventemos palavras para a contar, ouvintes para a escutar Que não lhe faltem em off os aplausos e as gargalhadas e música, aquela que só nós sabemos dançar! ... ... ...

sábado, 7 de agosto de 2010

... Porque se põe tão depressa o Sol? ...leva-me a luz traz-me a tristeza Lembra a embriaguês o amor feito nestes lençóis Tormento vazio de nós Sou quarto minguante numa Lua que me recebe quase Nova Balanço fragil em que agarro Breve extinguir-se-á o abrigo Incendiando as palavras vazias de meu viver Chama insignificante no mundo Cessará o fogo que me faz arder Para sempre... ...

sábado, 31 de julho de 2010

Síndrome do coração partido

Podia deixar-me morrer neste abraço na frescura de uma noite de Verão, Soubesse eu que nos esperava mais uma vida Em tudo igual a esta, os mesmos desejos, os mesmos erros, a mesma dor Podia deixar-me morrer no teu abraço embalada no bater do teu coração atordoada no nosso doce odor Apenas pelo gosto de te sentir quando a minha alma se for...

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Aprender a noite

Esta noite fez-se duas vezes: uma de Luz, uma de Som
silenciou-nos os sonhos
e os pesadelos
e o Milagre de ver o mar numa velha parede branca
Fez-se de céu e mar lambuzados de Luz
Fez-se de Música e espiritos inquietos Se não se atrever o Sol, A manhã seremos nós a fazê-la...

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Olá fresquinho!

És tu! Aquele punhado de areia com que eu brincava na praia! As tardes, passadas a deixar-te escorregar por entre os meus dedos de criança, pequenos grãos coloridos, num todo claro, um branco indefinido. O gozo de nunca te agarrar, nunca te prender, ver-te regressar devagarinho ao areal... Amar-te é assim, o prazer de te sentir escorregar...

quinta-feira, 22 de julho de 2010

A ceia

Não durmo, dói-me a noite. Saio de casa em direcção a nada. O ar fresco queima-me as entranhas, os raros sons da noite estalam-me no cérebro como achas de fogueira. Entro num restaurante que nunca tinha visto, algum alivio como entrada: as luzes suaves, os odores a maresia, o som das ondas... Tropeço num menu abandonado: o prato do dia é morte súbita, recomendado pelo chef é a morte lenta acompanhada de paz e tranquilidade. Posso escolher a morte súbita, sendo prato do dia, está pronta a sair e não terei tempo de me aborrecer. Quando me for apresentado o prato, o espanto ficará no meu rosto, para sempre. Pode não ter um bom resultado final, ser lembrada com ar de espanto... no entanto, foi sempre com espanto que vivi: espanto pela beleza das coisas, espanto pela descoberta de que afinal tudo pode ser tão simples. Não me parece mal. Por outro lado, o prato recomendado pelo chef, a morte lenta, com paz e tranquilidade também parece uma escolha razoável. Desde que os condimentos não sejam exagerados, a dor, nem em falta, o discernimento. Mantendo a lucidez perante o prato apresentado, corro o risco de ficar com o medo marcado no rosto. Não mais do que o risco de morrer sorrindo, mergulhada nas recordações, perspectivando um futuro em que não estarei presente mas para o qual contribui à minha medida, vivido e saboreado pelos meus filhos, pelos meus amigos. - É servida? - um vagabundo toca-me no braço com uma sandes de pasta de atum. Acordou-me daquele sonho estranho. Sorri-lhe e agradeci, abracei-o no seu ar de quem já viu malucos para tudo, desprendido. Voltei para casa.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Lágrimas salgadas

As suas lágrimas procuram ávidas onde desaguar. Não lhe basta o rio, não lhe chega o mar. Abre-se de lamento e dor, sofre assim em grito mudo, sofre por Amor. O poeta não perde quem ama, na sua Alma vive-se para sempre. O sal do rosto leva-o o vento, Passeando a lingua pelos lábios, saboreio-o sem beijar.

domingo, 18 de julho de 2010

El Salvador - Prisão juvenil

O medo anda pelas ruas. Assobia no vento, leva consigo as dores choradas na noite. O medo, abraço macabro de orgulho e dor. Bala que penetra a carne, arranca as almas, num rasto de sangue e morte... porque sim basta. O medo anda pelas ruas. Num olhar, sem piedade, num esgar de prazer sádico, aprisionado em ódio. O medo, som indecifrável, três tempos numa valsa: Um tiro, um grito, um aplauso... violência de bairro, gratuita e morte... porque sim basta. O medo anda pelas ruas. O homicida salva o bando, o bando salva o bairro. O bairro salva o bando. Quem salva o homicida?

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Memórias estrambalhadas

Faço uma poção: 1/3 de memórias, 1/3 de viagens que não fiz e um 1/3 de mim mesma. Agito, junto gelo grosseiramente picado, posso enfeitar com o teu olhar, lançar umas pitadas do odor que esqueceste nas minhas mãos, pó mágico e... Viajo Viajo à minha infância, às bandas desenhadas, minha companhia, Heróis solitários numa demanda de si mesmos, perdidos na luta pelo bem. Viajo numa selva onde se ouve sempre bater o coração da Terra. Viajo ao melhor amor que fiz, ao som da tua voz... à sede do teu toque. Tudo isto é o que sou, a demanda de mim em memórias assim... Estrambalhadas!

terça-feira, 13 de julho de 2010

Nós cegos, surdos e mudos

Conta-me dos teus Nós, desagua em mim a tua angústia. Desamarra - te do passado em mim, solta-te, grita! Submerge neste Rio que inventei para ti, ouve o silêncio, dos teus segredos. No fim... começa de novo

sexta-feira, 9 de julho de 2010

O Tempo pergunta ao Tempo quanto Tempo o Tempo tem

Vejo o Sol esconder-se e lembro-me daquela tarde de Fevereiro, uma viagem inesperada, a caminho da morte. Levava-me o carro, sabia o caminho. O meu olhar preso ao pôr-do-Sol. Assolava-me a certeza assustadora de que a pessoa que me esperava nunca mais o veria, a suspeita de que na véspera ela não se lembrara de o ver uma última vez. Ver o Sol esconder-se por detrás dos montes verdejantes do Alentejo é algo que devia marcar a nossa despedida desta vida. É tudo uma questão de Tempo. Traiçoeiro passa por nós, mergulha-nos numa amnésia de si mesmo. Passamos o Tempo a "matar" o Tempo, quando afinal é o Tempo que nos mata e nos faz nascer. Não existem horas, meses nem anos, não conto assim o Tempo que passa pela morte, nem o Tempo que passa por nós. Não tenho idade, os meus amigos não têm idade: eu vivo, os meus amigos vivem. Única certeza que quero perpétuar, sem Tempo.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Canto... do Cisne

Lamento de... nunca Ter-me perdido nos teus braços a caminho de Amanhã, a bordo de um passado sem memórias de ti Tatuado invisivel no meu corpo, o manto com que me cubro e me escondo de Mim Lamento de... nunca Ter viajado no céu pulando de Sol em Lua varrendo as estrelas pelo prazer do Caos Confundindo o mundo nas cores com que me cubro e me escondo de Mim Lamento de... nunca Ter-me perdido num campo de trigo

domingo, 4 de julho de 2010

Nunca aprendi a escrever

Escondo com a mão as palavras que escrevo Palavras que não quero ler porque se escrevem por si Dominam e Escrevem-me as palavras. Voltei para escrever, para quem quiser saber Quem sou... eu já não sei, não quero saber Semi cerro os olhos para as olhar sem ler Escondi-me na floresta verde, ri, chorei e alucinei Perdi-me na memória de um futuro inventado por mim Volto sim, vazia desaprendida de palavras, esquecida de ser amada

quinta-feira, 1 de julho de 2010

"Senhoras e senhores passageiros, neste momento sobrevoamos Casablanca"

Cidade branca, a milhas de altitude, a meus pés. Fantasia de Hollywood, história de amor em tons de cinza. Oiço uma melodia, num piano qualquer, num bar qualquer "you must remmember this, a kiss is just a kiss" Não, não é só um beijo, Um beijo é memória, Inesquecível Porque sim, Para sempre, Porque sim É mesmo assim: Irrepetível, sim

terça-feira, 29 de junho de 2010

...de ninguém

Nunca disse "Meu amor", Porque não é de ninguém O amor é livre, Palavra infinitamente celebrada Visita cada um à sua maneira, Sem avisar à chegada Nem denunciar a partida Sem possuir, Domina, Torna-se o centro de todas as coisas Presente ou ausente Se fosse banida esta palavra, Extinguir-se-ia a chama dos poetas O que digo eu, se não digo "meu amor"? Não digo nada, não canto, Visto-me de aguarela e deito-me sobre a tela, Sendo de todas as cores, não sou nenhuma Apenas sou nada de ninguém

domingo, 27 de junho de 2010

Sonho de uma noite... de Verão?

Como se fosse Dezembro o nosso beijo fez-se abraço e o abraço fez-se amor Como se fosse Dezembro Ficámos assim, eu em ti e tu em mim As estrelas choveram em nós, marcando os corpos, sinais perpétuos de luz e de desejo E inventámos esta noite em que se fez Verão Corpos e almas, unidos em suor e lágrimas Como se fosse Dezembro

terça-feira, 22 de junho de 2010

O balão

Abraça-me. Agarra-me como se eu fosse um balão de hélio. Prende-me com um nó infantil sem nexo, para que te não fuja. Amarra-me, como a Ulisses, para não sucumbir ao canto das sereias Seduz-me, com o teu encanto, ofuscando a luz das estrelas Não sei se te fujo para elas, se me deixe tombar ... Morrerei, como o balão, ao esqueceres que te pertenço. Cativa-me... Só assim serei livre!

domingo, 20 de junho de 2010

O fim dos dias

Não quero que este dia acabe. Não por ser um dia especial, mas por ser um dia sem nada de especial. Alguém me disse: Porque raio achas que a vida tem que ser especial? Mete na cabeça que a vida é uma merda e por mais que te esforces, não encontrarás nada de especial... tudo se resume a uma boa queca! Não quis acreditar, todos os dias espero um dia especial, o dia começa, o dia acaba e... não se passa nada de especial. Ano após ano... Por vezes, o feitiço parece perder a força, eu penso: agora sim, tudo vai correr bem. Não quero que este dia acabe, nunca mais...Não quero mais dias!

quinta-feira, 17 de junho de 2010

A DOR. Há dias em que a dor me recorda que não tenho escolha, sou de carne e de osso. A dor instalou-se, vai-me mordendo o corpo como cão raivoso e sou eu quem lhe dá abrigo. A DOR rasga-me sem pudor, reduz o meu corpo a uma amalgama de sensações, a um latejar constante e a uma vontade louca de não estar aqui, numa ânsia de procurar um sitio onde me esconder.DOR DOR DOR DOR

quarta-feira, 16 de junho de 2010

A tela da liberdade

Deixei de ver o vagabundo com a sua tela colorida. Abrigava-se numa porta de um prédio, protegia as tintas e os pincéis da chuva e do vento. Não me sai da memória... a dignidade, a cabeça erguida, o corpo grande e aberto ao mundo, o orgulho com que segurava os pincéis e coloria a tela. Aquele era o seu mundo, a sua vida, a sua razão. Quem não quiser olhar não olhe, quem não quiser admitir a sua existência, não admita, quem criticar o seu modo de vida, que tente fazer melhor: imprimir a própria existência numa tela que lembra as cores do mundo inteiro e questiona a liberdade de quem passa.

domingo, 13 de junho de 2010

I Love Paris

sábado, 12 de junho de 2010

um bocadinho do que escrevi ontem...

"As lojas estavam fechadas, no banco de jardim perto da paragem de taxis, já aguardavam pela ceia os sem-abrigo do costume. Tão cedo? Mal amanheceu! Talvez agora também distribuissem pequeno almoço nas carrinhas de voluntários. Isso era bom! Resolveu esperar pela abertura das lojas, só para entrar lá dentro e sentir o toque das roupas novas, o cheiro dos perfumes. Desceu a Guerra Junqueiro, e reparou que o sem abrigo que faz a cama junto à Zara ainda não tinha arrumado a "cama". Quando chegou ao fim da rua, a luz começou a escassear. Fez-se noite. Afinal a cama já estava feita. Na Almirante Reis, saiam dos autocarros mulheres com cheiro a lixivia, apressadas de regresso a casa. Em redor dos sem-abrigo, câmaras de filmar, pessoas com coletes reflectores a oferecer a única refeição: a ceia, composta do pão que mais ninguém quer comer e bolos fora de prazo. Desconcertada, voltou para casa, não sem parar na Praça de Londres por debaixo de uma árvore iluminada, aí parou, ergueu o olhar para contemplar as pequenas luzes, semi cerrando os olhos, só para se sentir parte de um firmamento onde não existe amanhecer."

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Hoje choveu e fez sol. As bruxas comeram pão mole. Festim macabro nas ruas molhadas, danças sem nexo. Feitiços foram lançados, fogo fátuo indiferente à chuva cegava quem os olhasse. O mundo escondeu-se, protegeu-se nos centros comerciais... Lá dentro livraram-se do dinheiro, encheram-se de inutilidades, compraram sorrisos, venderam angústias. Esqueceram a chuva, as danças de bruxas, o fogo fátuo e mesmo sem o olhar cegaram, O beijo que o Sol lançou às àrvores, devolveu o brilho às folhas, tremeram as folhas de prazer, acordaram as aves, E amornou a terra que se fez meu leito.

sábado, 5 de junho de 2010

Cio do amanhecer

Recordo o caminho do teu corpo e nele me perco. Saboreio o teu doce até se tornar sal. No aperto dos teus braços segredo-te o meu folego Dedilhas-me até ser eu própria as tuas mãos, desfazer-me no prazer que somos, Nesta Primavera em que me aqueces, serei a tua viola, o teu gemido de prazer, o teu fado vadio. Canta-me que me levas a voz, roubas-me os verbos e enches-me de vida!

terça-feira, 1 de junho de 2010

Lucky Day

"Ladies and gentlemen. Harry's Harbour is proud to present, under the big top tonight. Human Oddities. That's right!" O palhaço multicores avançou para mim. Pernas curtas, tronco largo, cara pintada de vermelho e preto. Roupa de cetim vermelha, azul e branca. Ria-se. Ria-se de mim porque a esquisita era eu. Toma um ar sério, bebe um shot de vodka ao som de uma polka e fala: - Minha querida, tens tudo para ser tudo! Aponta uma cova de terra fresca no chão. Ao lado uma lapide tombada e inacabada. Continua, olhando nos olhos: - Mas não és! E ri, ao principio gargalhadas contidas até que as solta na sua plenitude - Mas não és! - Estas palavras são a sua gargalhada no mundo inteiro onde trompas e trompetes, realejos e gaitas de foles tocam em desalinho.

domingo, 30 de maio de 2010

Alfama

Aldeia dentro da cidade, vaidosa de tão fotografada. Respira-se o Tejo e o carvão ardente nos pateos. Vai-se a luz devagarinho, a noite vai beijando com gozo o rio, abrigando aqueles que não têm para onde ir. A música de cada um apenas concorda no refrão do 28 ao atravessar Lisboa. Cada um segue um caminho, cada um procura o seu formigueiro, guarda o seu segredo de noites sós e dias esquecidos, guardando na alma a esperança desta cidade não esquecer o amor que lhe temos, apesar de espelhado no rosto.

À porta fechada

E se fosse de novo aquele dia em que te vi descer as escadas lançando um olhar de despedida? Se fosse de novo o dia em que o Sol delegou funções em pequenas lamparinas imitando o seu próprio brilho? Hoje não entendo palavras de amor, hoje não acredito no tempo, nem em promessas. Hoje não espero e parto de vez, o que sobrar não serei eu... e tu nunca mais.

sábado, 29 de maio de 2010

180/106

Brinco. Porque foi a brincar que fui feita. Brinco vivendo, vivo brincando, porque nada disto pode ser a sério. Respondo neste jogo o que o jogo espera de mim, apenas porque receio perdê-lo de vez. Acredito nas promessas que nunca se irão realizar, um dia a minha memória confusa acreditará que as vivi. No fim, brincarei feliz com o sopro irrepetível. Há que incentivar o comércio tradicional e mesmo ao lado da farmácia, temos a funerária, que também tem direito ao negócio.

terça-feira, 25 de maio de 2010

fuga

Fujo de mim para não esperar por ti. Páro o tempo para não o contar. E espero. Calo o teu nome, grito, sufoco o eco dentro de mim (é ele que me faz bater o coração num compasso ternário). - É mais fácil fazer de conta a ouvir uma valsa. Não há cama onde me repouse, não há abrigo onde possa recolher, só eu e o fim que rabisquei para mim. Canso-me do cansaço da fuga, dúvido da dúvida do amanhã e dos dias depois de amanhã Não tarda cairá o céu e ainda não encontrei onde me esconder.

sábado, 22 de maio de 2010

Agramonte

Passeava como quem foge da crueldade do erro que me levara àquela cidade, no cemitério de Agramonte. Procurava os meus, sabendo que não era ali que os encontrava. Passeava em passo de corrida, deixando para trás flores de plástico, velas derretidas, fotos desbotadas, frases de saudade eterna. Pisava o chão como quem pisa a própria vida, até me deixar tombar sobre a sepultura mais abandonada, nome apagado, coberta de terra tão seca que quase se abria. Ajoelhava e acariciava a gata preta e branca de ventre cheio de vida, sentinela daquele espaço abandonado. O guarda percorria os corredores de silêncio, informando que estava na hora de fechar, era necessário sair. Atormentava-me a dúvida, seria para mim que falava? - Vamos lá menina! E eu agradecia a informação - afinal não era desta vez que eu ficava.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

"Segredo para ser segredo não se conta"

Sempre acreditei num lugar onde pairam todas as palavras ditas. Imagino-as girando sobre si mesmas, formando frases confusas e sem sentido. Nesse lugar não há som, só a ideia da palavra. quem as olhe entende-as. Mergulho nesse lago sem principio nem fim. Vejo-me nas palavras que nunca ouvi, envolvem-me num único nó, asfixiam-me e assim me deixo ir, num misto de prazer e de terror. Com as minhas últimas forças, quebro o silêncio e ouve-se pelo universo inteiro uma única palavra: aquela que te irei segredar.

domingo, 16 de maio de 2010

Le Petit Prince (Antoine de Saint-Exupery)

"Tu n'es encore pour moi qu'un petit garçon tout semblable à cent mille petits garçons. Et je n'ai pas besoin de toi. Et tu n'as pas besoin de moi non plus. Je ne suis pour toi qu'un renard semblable à cent mille renards. Mais, si tu m'apprivoises, nous aurons besoin l'un de l'autre." C'est trop tard....

Amanhecer sem cor

Todos os dias pinto o céu. Têm-me faltado cores, tenho-o pintado sem cor, negro, um meio-dia de noite sem luar. As cores fogem de mim, insurgiram-se contra a minha criação de dias melhores. Procuram novas telas, e nem o chamamento da passarada nas árvores as convence de que aqui a pintora não é assim tão pouco merecedora. Vejo-me assim, perdida num tempo sem fim, paleta e pincéis nas mãos, perante uma tela nua, onde só se espelha a dor da solidão, a angústia desta noite que não há meio de terminar. Estúpida, acordo na manhã seguinte e repito os rituais, esperando que esse seja o dia em que me esborracho no muro dos outros, como insecto nojento e insignificante.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Aterroriza-me o silêncio. Afundo-me nas águas dos lagos gelados, perco-me no mundo. Fico assim... sem pé. No hay banda

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Amigos! Fechou a feira! Podem partir, lambuzados de algodão doce, peganhentos de açucar e tontos de música de realejo. Vejo um, de rabo gordo, a fugir, ainda lambendo os dedos e olhando de soslaio a barraca dos tiros. A mulher oxigenada de espingarda na mão, fazendo uma bola de pastilha, aconchega as mamas no decote. Vão levar o corpo à terra. Já estão prontos os palhaços, com torrões de terra para atirar ao caixão de pinho. As trapezistas abraçam as flores que irão lançar graciosas. Na barraca da ginginha, emborco mais uma ou duas, vai ser muito tempo sem sol, uma cova espera por mim. Abraço os meus amigos deixando no ar o bafo a alcool. Quem não sabe diz que é cheiro de cadáver. Aos tombos lá vou, os coveiros esperam com ar revoltado a quebra da tolerância de ponto pela visita do Papa. - O pessoal não tem dia para morrer e o cheiro não se aguenta.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

"Afinal, quem és tu, romeiro? Ninguem!" Sendo tanto, numa palavra passamos a nada. Diz-se louco, completamente louco, daquele que tem a lucidez estampada no rosto. Cego. Chama-se cego ao que vê para além de tudo, além de todos e que nos ignora nesta pequenez. Afinal, quem és tu, Ana? Quase tudo e afinal de contas ninguem. Louca por nada e cega pela escuridão em que me deixo mergulhar.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Madrugada de Abril - Século XXI

E se eu não dormir nunca mais? E se a vida passar a ser uma noite permanente, sem sonhos nem pesadelos? E se um dia acordar no meio de nada, vestida de coisa nenhuma, destinada a caminhar para sempre nos Centros Comerciais à procura de roupa para vestir? Vou passar a c0leccionar cartões de cliente e talões de desconto, a pedir brochuras nas agências de viagens e a parar em todas as montras de ourivesarias. Quando o corpo ceder ao cansaço, farei um colchão com as revistas de viagens sobre um banco de jardim. Cobrir-me-ei com as roupas da ultima moda Primavera Verão e inventarei um jogo de sueca, com a passarada , as cartas serão os cartões de loja e cupões de desconto. Nesse jogo será apostado e decidido qual o rouxinol que me irá manter acordada até à Liberdade voltar...Se eu chegar a adormecer... Cantava minha mãe: "Nossa Senhora disse disse, enquanto a videira subisse , não dormisse não dormisse" - assim o rouxinol estava atento e não se deixava prender pelos galhos da videira que se enrolariam fatalmente na sua patinha durante a noite.

domingo, 25 de abril de 2010

The Wall

Passa o tempo e não sei se passo com ele. Passo eu e ele fica. Quem passa não chega a lado algum, quem fica vive. Vai decidir o tempo quem fica e quem passa. Falo, mas o tempo é surdo, grito mas a vida ignora-me: tenho que conseguir ignorar o tempo e o silêncio. Estendo a mão durante a queda, procurando outra que não está lá, ou me deixo cair ou me agarro com as próprias unhas a esta parede que inventei, sem abraços, sem beijos nem afectos. Por fim, tudo o que resta é seguir os vermes e encontrar o corpo.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Sou uma bola de sabão. Vinda não se sabe de onde. Leve, leva-me o vento. Rebolo sobre mim mesma, num brilho de nada, em cor nenhuma . Odor a sabão. Chego acima da atmosfera, fora da terra, do mundo e das gentes. Enfrento tempestades de estrelas, guerras de deuses, nuvens de cinza vulcânica, desabamentos de glaciares e desmoronamentos de terra. Existo enquanto me soprares de vida. Na noite em que deixares de me sonhar, faço-me naquilo que sou: umas gotas de água nas tuas mãos nuas de anéis.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Humores nocturnos

Esta noite atirei os cobertores para o fundo da cama. Vesti-me à pressa, roupa de trazer por casa apenas e saí, sem me importar com a cama desfeita. Andei. Passei pela Mãe d'água, pelo Rato, Miradouro de São Pedro de Alcantara. Sempre a andar, a um ritmo de quem sabe muito bem para onde vai, sem cansaço. Desci a Rua do Alecrim, dei por mim na Rocha do Conde d'Óbidos e perdi-me exactamente onde me queria encontrar: na Ponte. Nao estava cansada, e estava num daqueles raros momentos em que sentia ser dona de mim. Subi ao cabo, o meu objectivo: atravessar a ponte pelos seus cabos principais, em equilibrio com a noite, sem medo, sabendo que uma queda, seria o mais digno a acontecer, já que do outro lado nada me esperava. Acabei por acordar do lado de cá, onde nada me espera, onde quem espera sou eu e não sei bem pelo quê.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Para ti

Pudesse eu ser uma cidade inteira, abarcar nos meus braços a sua luz e com ela adormecer-te nas tuas memórias tristes. Deixar-te assim, livre para chorar, livre para partir, livre para ficar. Soubesse eu ensinar-te a contar as estrelas, mostrar-te aquela que brilha sempre, só para ti, onde se guarda voz, o sorriso e o abraço da alma de quem te fizeste gente. Mas sou pequena...

quinta-feira, 8 de abril de 2010

"You must remember this... a kiss is just a kiss..."

Leva-me! Leva-me para onde as noites brilhem. Leva-me para um segredo tão secreto como o nosso amar. Abandona-me depois, na memória deste conto, na berma dos teus caminhos, na encruzilhada das histórias que ainda não sabes, mas vais contar. Deixa-me morrer assim esta morte invisivel, nos teus braços, num sorriso, num beijo, uma morte de desejo.

domingo, 4 de abril de 2010

Cansada dos dias

Quero correr pela estrada, sem medo, sem luz. Sentir-me sacudida pela velocidade que passa indiferente. Esquecer-me do corpo, do destino que não sei prever nem precaver.Deixar-me levar pelo impacto, ser projectada para o espaço e não voltar nunca mais.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

"take me home you silly boy, put your arms around..." esta maré leva-me a ti, arrasta-me pelo areal, traça a sangue e sal o mapa dos nossos corpos. para que te não percas na volta, inundando de vida e sabor o que somos: marés que vão, marés que vêm

segunda-feira, 29 de março de 2010

Pá!

Estou de férias. Pensei ir até Amsterdam para fumar umas ganzas até cair para o lado. Depois lembrei-me que não sabia para que lado devia cair. Para a frente? Não existe para a frente. Para trás? Nunca, nenhum estado de inconsciência me faria esquecer o pesadelo que fica atrás. Resta-me a esquerda e a direita. Politicamente nunca cairia para a direita, por muito forte que fosse a ganza. Para a esquerda! Sim para a esquerda... invariavelmente, onde nada nem ninguém me ampara a queda: "Alevantati pá!"

quinta-feira, 25 de março de 2010

Por mais que te sonhe, não te saberei de outra forma: um sonho. Dizes me ao ouvido palavras que não existem, vestes -me as cores inventadas no velho carrossel, contas-me histórias. Envolves-me nos teus braços em cheiro de algodão doce. É assim que durmo nestas noites, sob um sol que não pára de brilhar.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Passeei em campos salpicados de papoilas. Bastava-me a sua cor de sangue e o toque macio que me levava por caminhos de seda que nunca conheci. Ensinaram-me a colhê-las, a dobrar as pétalas ao contrário, a arrancar os "cabelos" negros que lhe revelavam um rosto. As pétalas eram saias, o pé, o único apoio para a sua coreografia. Em segundos passavam de papoilas a bailarinas e em outros tantos passavam de bailarinas a cadáveres mutilados. Como é facil aprender a destruir os momentos de beleza e prazer.O que não conto é daquela papoila que mantenho escrita no meu peito, sempre inteira, sempre viva.

domingo, 21 de março de 2010

C'est trop facile de faire semblant

Fico em silêncio, fazendo de conta que serei ouvida. Esperando um dia em que o tempo me permita ouvir quem sou. Só ouve quem me quer, sou muda! Tudo o resto é fazer de conta, enganos, ilusões, bofetadas pela pá de um moinho em fúria! E eu? Quem sou? Amiga reles e ilegitima do tempo que sobra entre as ventanias.

sábado, 13 de março de 2010

OS

Partilhar uma chávena de chá Simples O chá O partilhar. Partilhar uma chávena de chá com um amigo Simples O amigo. Conversar em silêncio Contar histórias por inventar Apenas estar Apenas ser. Verter lágrimas De lucia-lima O chá. Sabor doce Travo a sal O amigo.

sexta-feira, 12 de março de 2010

nocturno em Sol

Soltou-se um grito na escuridão, acordou a cidade em sobressalto. Estou só... e não quero estar aqui!

segunda-feira, 8 de março de 2010

Mulher Con Sumo

A cada oferta e talão de desconto, amostra gratuita e voucher de spa, apetece-me responder com as palavras de António Gedeão, ditas de um só fôlego, bebidas de um só trago e cuspidas com orgulho... Calçada de Carriche "Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada. Sobe, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe sobe a calçada. Saiu de casa de madrugada; regressa a casa é já noite fechada. Na mão grosseira, de pele queimada, leva a lancheira desengonçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Luísa é nova, desenxovalhada, tem perna gorda, bem torneada. Ferve-lhe o sangue de afogueada; saltam-lhe os peitos na caminhada. Anda, Luísa. Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Passam magalas, rapaziada, palpam-lhe as coxas não dá por nada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Chegou a casa não disse nada. Pegou na filha, deu-lhe a mamada; bebeu a sopa numa golada; lavou a loiça, varreu a escada; deu jeito à casa desarranjada; coseu a roupa já remendada; despiu-se à pressa, desinteressada; caiu na cama de uma assentada; chegou o homem, viu-a deitada; serviu-se dela, não deu por nada. Anda, Luísa. Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Na manhã débil, sem alvorada, salta da cama, desembestada; puxa da filha, dá-lhe a mamada; veste-se à pressa, desengonçada; anda, ciranda, desaustinada; range o soalho a cada passada, salta para a rua, corre açodada, galga o passeio, desce o passeio, desce a calçada, chega à oficina à hora marcada, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga; toca a sineta na hora aprazada, corre à cantina, volta à toada, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga. Regressa a casa é já noite fechada. Luísa arqueja pela calçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada."

quarta-feira, 3 de março de 2010

Dor iminente

Inventaram-se os ponteiros para marcar o tempo. Marcam o teu tempo. Impenetráveis, insensiveis à tua dor, sem denunciar o fim, marcham sem arrependimento. Sabes que vão parar... esperas que marquem o fim. Aquele minuto que acabaste de passar pode ter sido o último. Aquela lua cheia que inunda a noite, pode ter sido a tua última lua e o seu banho de luz a tua mortalha... que te abrace para sempre Victor!

domingo, 28 de fevereiro de 2010

I'm your private dancer

Pele de louça dourada, num demi plie eterno, feita de uma só peça, a pequena saia branca em tule, era a bailarina mais rigida no mundo, desprovida de movimento. Voltas e reviravoltas naquelas mãos de menina eram a sua coreografia. A sua imagem reflectia - se no verde do olhar da menina, levantava -se o pano, o pequeno coração dava as pancadas que a anunciavam, a bailarina ganhava vida à boca de cena. O brilho das estrelas iluminava o seu rosto de louça, sorria, dançava, viajava no vento para além do palco que era a imaginação de criança. A menina cresceu, partiu-se em cacos a bailarina, a saia de tule rasgou-se, desfez-se em fios. A mulher recolhe os pedaços, passa a vida a moldá-los, a procurar a forma, o jeito do demi plie. Dos fios fez um novelo, eternamente tece de novo a pequena saia. Onde pára agora a coreografia de ternura e magia? Faz-se num dedilhar de poeta...

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Sem palavras, vazia O silêncio é tudo e tudo é solidão
Guardo os segredos, grito mudo dos meus medos
e adormeço assim, sem tempo nem perdão

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Babushka

Hoje, abutres pairam sobre o teu corpo. Se o tempo se repetisse morrerias amanhã. Lembras - te de me dizer que te matavas? Que até já tinhas escrito uma carta? Amanhã morreste e eu estou triste como nunca. O que pretendes fazer agora, minha mãe? Até hoje não encontrei a carta, mas a maldição ficou impressa no embrião...

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Um baile de máscaras

Tenho medo. Grito por ajuda sem emitir um som, um sinal. Sei que não há quem me proteja da fera, da sua beleza e força, do seu instinto selvagem. Quero desaparecer daquela sala inundada de música, esconder-me onde o céu não me esmague ao cair. Luto contra o cansaço dos desencontros da vida, escada rolante em sentido descendente que me cabe subir ao encontro - do quê?

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Dia de S. Consumim

Ficava-te bem uma rosa vermelha, não hoje... num dia qualquer. Uma rosa das que não se fazem nas lojas, vermelha do sangue derramado no parto. Uma rosa ainda na memória do orvalho, lágrima das noites febris e virais. Uma rosa lembrada do odor, perfume libertado no amor. Ficava - te bem uma rosa vermelha, feita de pétalas de veludo e folhas verdes... e espinhos.
...
Gosto de ver, no dia dos namorados, os mais velhos a comprarem flores. Não têm os olhos arregalados de consumismo, nao oferecem telémoveis nem perfumes caros. Oferecem flores com a calma e sabedoria que só o tempo ensina. Imagino a mulher que vai receber esse ramo colorido, depois de uma vida longa, dedicada aos filhos, à familia, uma vida de trabalhos e de espinhos. O dia dos namorados devia ser comemorado depois dos sessenta anos, na condição de já se ter mais do que vinte de vida em comum... quem sou eu para saber o que é namorar?

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Morte anunciada

...

chegou o tempo

e a espuma das ondas

passeia nas tuas mãos

Desfazem-se ao toque

são nada

são sal colado à tua pele 
desfeito na água doce do teu banho

fita de cinema mudo
cenas que não filmaste
e desejos vãos

Apaga - o

Apaga o tempo, agora que é chama

Vela cedendo ao vento
queimando a carne e a pele

chegou o tempo 
voltamos a ser papel de rebuçado, transparente e lambuzado

... poema mediocre e inacabado

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Futurologia

Escapa-se-me a vida como a areia, por entre os dedos. A luz começa a extinguir-se, é a sua ausência que pinta as ruas por onde ando. Já todos recolheram ao calor das casas, ao brilho das vozes que os aguardam. Sei que este caminho me leva ao silêncio, sei que um dia perderei o rosto neste jogo perigoso em que o tempo é senhor. Nada me espera, ninguém me anseia. Procuro-me no espelho partido, toco o fio de sangue ainda quente que escorrega pela minha imagem. É o mais próximo de um toque humano que poderei sentir.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Ensina-me

Ensina-me a dançar. A tua voz será a minha musica, o teu corpo o meu. Ensina-me as palavras, as palavras que sentes, as palavras com que nos acaricias as palavras que te saltam da alma... as mesmas com que me despenteias. O silêncio! Ensina-me também o teu silêncio. O silêncio do teu prazer, o silêncio com que me abraças. Ensina-me o amor e a liberdade, guardando na nossa história o sabor e o cheiro deste amor.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Há dias assim

A lâmina beija o branco da pele, tornando-a vermelha. O rio desenhado pelo vermelho do sangue desagua-me na alma. A dor fina e ardente penetra a carne e invade-me os sentidos. Acalma aquela dor que me mora na alma sem tempo. A realidade torna-se turva, as linhas dançam à minha frente e as cores perdem-se. Vai-se o tino e o sopro de vida torna-se débil. A dor torna-se maior que o golpe, a dor torna-se maior que a alma.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Bom dia!

Esta cidade às vezes fica inundada de um cheiro a couves podres. Para isso acontecer, teve que chover durante vários dias, o lixo do natal abandonado nas ruas, como deve ser para cumprir a tradição. Saio à rua pela manhã e a primeira lufada de ar tem esse cheiro fétido, a couves com quinze dias de estufa. Contorno os ecopontos e tropeço nas caixas de aspiradores misturadas com restos de perú já com larvas. Entro no café para o café "curto" a que não gosto de chamar "italiana" por me tirar do sério e metem-me à frente uma banheira cheia até acima com água de lavar chávenas. O empregado sorri mostrando as migalhas do pastel de nata que surripiou na copa. - Pois é... o Natal já passou...um novo ano... - e faz estalinhos com a lingua. Corro dali para fora, atravesso no verde ignorado por uma carrinha, tento desviar-me da carrinha, mas do outro lado já está quase em cima de mim um aprendiz de macho latino (certamente miope) balbuciando - ah boa, sexy.... - quase no meu ouvido, deixando cheirar o seu hálito a alho... desvio -me dele, prefiro a carrinha que sempre deve ter seguro de acidentes. Por fim chego ao trabalho, pensativa... devia tomar mais um banho.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Lume de chão Lembro o desejo de uma fogueira, a luz de brasas que desfazia brincando, o cheiro a petróleo nos candeeiros, a cafeteira de ferro sobre o tripé. Livros, livros de histórias, a história do vento. O vento em forma de assobio, levando consigo as sementes lançadas à terra, as roupas estendidas. Lembro o calor do lume, as vozes murmurando contos de bruxas e encantos, o cheiro do leite acabado de ferver, a hora de dormir. Os lençóis de linho com cheiro de sabão e os medos... homens do saco e bichos papões. Lembro o acordar com o frio no rosto, o cheiro do chocolate que o pai de madrugada pousou sobre a almofada. E depois... a luz, os risos, as manhãs lavadas e serenas num alentejo perdido.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Acordei de celofane. Fina, transparente, quase invisivel. Pronta a ser amachucada e atirada para o chão. Quem olhasse ainda via as manchas de melaço em mim, do rebuçado arrancado à pressa e com gosto. Assim de celofane amachucado rebolei pelas tábuas inseguras do cais, empurrada pelo vento da manhã. Crianças passaram por mim, jogaram e fintaram para esquecer correndo depois em direcção à gaivota que os observava antes de voar para longe. Foi de celofane que deixei o vento levar-me para longe, planando sobre o rio... sem medo da queda.