domingo, 30 de maio de 2010

Alfama

Aldeia dentro da cidade, vaidosa de tão fotografada. Respira-se o Tejo e o carvão ardente nos pateos. Vai-se a luz devagarinho, a noite vai beijando com gozo o rio, abrigando aqueles que não têm para onde ir. A música de cada um apenas concorda no refrão do 28 ao atravessar Lisboa. Cada um segue um caminho, cada um procura o seu formigueiro, guarda o seu segredo de noites sós e dias esquecidos, guardando na alma a esperança desta cidade não esquecer o amor que lhe temos, apesar de espelhado no rosto.

À porta fechada

E se fosse de novo aquele dia em que te vi descer as escadas lançando um olhar de despedida? Se fosse de novo o dia em que o Sol delegou funções em pequenas lamparinas imitando o seu próprio brilho? Hoje não entendo palavras de amor, hoje não acredito no tempo, nem em promessas. Hoje não espero e parto de vez, o que sobrar não serei eu... e tu nunca mais.

sábado, 29 de maio de 2010

180/106

Brinco. Porque foi a brincar que fui feita. Brinco vivendo, vivo brincando, porque nada disto pode ser a sério. Respondo neste jogo o que o jogo espera de mim, apenas porque receio perdê-lo de vez. Acredito nas promessas que nunca se irão realizar, um dia a minha memória confusa acreditará que as vivi. No fim, brincarei feliz com o sopro irrepetível. Há que incentivar o comércio tradicional e mesmo ao lado da farmácia, temos a funerária, que também tem direito ao negócio.

terça-feira, 25 de maio de 2010

fuga

Fujo de mim para não esperar por ti. Páro o tempo para não o contar. E espero. Calo o teu nome, grito, sufoco o eco dentro de mim (é ele que me faz bater o coração num compasso ternário). - É mais fácil fazer de conta a ouvir uma valsa. Não há cama onde me repouse, não há abrigo onde possa recolher, só eu e o fim que rabisquei para mim. Canso-me do cansaço da fuga, dúvido da dúvida do amanhã e dos dias depois de amanhã Não tarda cairá o céu e ainda não encontrei onde me esconder.

sábado, 22 de maio de 2010

Agramonte

Passeava como quem foge da crueldade do erro que me levara àquela cidade, no cemitério de Agramonte. Procurava os meus, sabendo que não era ali que os encontrava. Passeava em passo de corrida, deixando para trás flores de plástico, velas derretidas, fotos desbotadas, frases de saudade eterna. Pisava o chão como quem pisa a própria vida, até me deixar tombar sobre a sepultura mais abandonada, nome apagado, coberta de terra tão seca que quase se abria. Ajoelhava e acariciava a gata preta e branca de ventre cheio de vida, sentinela daquele espaço abandonado. O guarda percorria os corredores de silêncio, informando que estava na hora de fechar, era necessário sair. Atormentava-me a dúvida, seria para mim que falava? - Vamos lá menina! E eu agradecia a informação - afinal não era desta vez que eu ficava.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

"Segredo para ser segredo não se conta"

Sempre acreditei num lugar onde pairam todas as palavras ditas. Imagino-as girando sobre si mesmas, formando frases confusas e sem sentido. Nesse lugar não há som, só a ideia da palavra. quem as olhe entende-as. Mergulho nesse lago sem principio nem fim. Vejo-me nas palavras que nunca ouvi, envolvem-me num único nó, asfixiam-me e assim me deixo ir, num misto de prazer e de terror. Com as minhas últimas forças, quebro o silêncio e ouve-se pelo universo inteiro uma única palavra: aquela que te irei segredar.

domingo, 16 de maio de 2010

Le Petit Prince (Antoine de Saint-Exupery)

"Tu n'es encore pour moi qu'un petit garçon tout semblable à cent mille petits garçons. Et je n'ai pas besoin de toi. Et tu n'as pas besoin de moi non plus. Je ne suis pour toi qu'un renard semblable à cent mille renards. Mais, si tu m'apprivoises, nous aurons besoin l'un de l'autre." C'est trop tard....

Amanhecer sem cor

Todos os dias pinto o céu. Têm-me faltado cores, tenho-o pintado sem cor, negro, um meio-dia de noite sem luar. As cores fogem de mim, insurgiram-se contra a minha criação de dias melhores. Procuram novas telas, e nem o chamamento da passarada nas árvores as convence de que aqui a pintora não é assim tão pouco merecedora. Vejo-me assim, perdida num tempo sem fim, paleta e pincéis nas mãos, perante uma tela nua, onde só se espelha a dor da solidão, a angústia desta noite que não há meio de terminar. Estúpida, acordo na manhã seguinte e repito os rituais, esperando que esse seja o dia em que me esborracho no muro dos outros, como insecto nojento e insignificante.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Aterroriza-me o silêncio. Afundo-me nas águas dos lagos gelados, perco-me no mundo. Fico assim... sem pé. No hay banda

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Amigos! Fechou a feira! Podem partir, lambuzados de algodão doce, peganhentos de açucar e tontos de música de realejo. Vejo um, de rabo gordo, a fugir, ainda lambendo os dedos e olhando de soslaio a barraca dos tiros. A mulher oxigenada de espingarda na mão, fazendo uma bola de pastilha, aconchega as mamas no decote. Vão levar o corpo à terra. Já estão prontos os palhaços, com torrões de terra para atirar ao caixão de pinho. As trapezistas abraçam as flores que irão lançar graciosas. Na barraca da ginginha, emborco mais uma ou duas, vai ser muito tempo sem sol, uma cova espera por mim. Abraço os meus amigos deixando no ar o bafo a alcool. Quem não sabe diz que é cheiro de cadáver. Aos tombos lá vou, os coveiros esperam com ar revoltado a quebra da tolerância de ponto pela visita do Papa. - O pessoal não tem dia para morrer e o cheiro não se aguenta.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

"Afinal, quem és tu, romeiro? Ninguem!" Sendo tanto, numa palavra passamos a nada. Diz-se louco, completamente louco, daquele que tem a lucidez estampada no rosto. Cego. Chama-se cego ao que vê para além de tudo, além de todos e que nos ignora nesta pequenez. Afinal, quem és tu, Ana? Quase tudo e afinal de contas ninguem. Louca por nada e cega pela escuridão em que me deixo mergulhar.