sábado, 30 de junho de 2012

... a walk on the wild side

...


Fechou a gaveta com decisão. Um som seco e firme. Lá dentro deixara a alma. Fora, ficou o corpete vermelho, o cinto de ligas, as meias pretas. Vestiu-se como uma galdéria. Não queria deixar margens para dúvidas: ia oferecer-se essa noite. Caminhava rápida, como quem foge da cobardia. Encontrou um homem. Não quis avaliá-lo, bastou-lhe sentir que ele não estava interessado em saber o seu nome. Pediu-lhe um cigarro que nunca fumou. Minutos depois desafiavam a suspensão do seu velho carro. Abafados em  odores, impregnados de sabores. Partilharam. Não beijou, não foi beijada. Como uma verdadeira galdéria. Não se despediram, seguiram caminhos diferentes. Não chegaram a saber o nome um do outro. Era madrugada quando chegou a casa, olhou a gaveta. Fechou-a à chave. Abriu a janela e atirou-a o mais longe que conseguiu. Aliviada, deitou-se sobre a cama, ainda vestida. Adormeceu, um sono profundo e não sonhou. A partir dessa noite nunca mais sonhou.


...

sexta-feira, 22 de junho de 2012

eterna

...

Renasceu. Tudo não passou de um engasgo de alma. Renasceu. E não foi bom. Por mais que a tosse sacudisse a sensação de perda, não conseguia espaço suficiente para respirar de novo. Sentia os olhos húmidos, o corpo esmagado, dilacerado. A pele parecia ter-se queimado e nascido de novo. Nenhuma dessas sensações era boa. Fechou os olhos, evitou tossir durante uns segundos. Procurou na escuridão que criou em si, uma recordação, uma memória, uma pequena história. Como chegou ali? Conseguiria recordar um prado de flores? Um toque macio na pele? Vazia. A sua alma estava vazia, renascida, sem ódios mas também sem amor. Parou de tossir, de nada servia, aquele era o ar que agora tinha para respirar. Sentiu uma gaze áspera secar-lhe os olhos. - Está a chorar? Não respondeu. Ficou zangada por renascer num mundo onde não pára de morrer.

...

quarta-feira, 20 de junho de 2012

era uma vez

...

Era uma vez um mar, onde flutuavam todos os rostos esquecidos. Sem maré, o caminho fazia-se à deriva, sem partida nem chegada. Uma noite, um meteorito rasgou os céus, caiu sobre o mar. Febris, as águas agitaram-se, iluminaram-se, deixando que a Lua percebesse o contorno dos rostos. Foi uma agitação que nunca mais abandonou aquele mar, uma luz que nunca mais ali se apagou. Os rostos, conta-se, insurgiram-se contra o seu destino de deriva solitária. Uniram-se, cuspiram os corações, deixaram-se afundar. Deles nasceu um magnifico coral, fonte e abrigo de vida, colorido, alegre e imortal.

...

sexta-feira, 15 de junho de 2012

lua nova

...

Da mesma forma que outrora me dissolvi em amores, dissolvo-me hoje nesta noite sem lua. É a  ausência que torna mais brilhantes as estrelas. É a mão que me arranca o coração que torna cada pulsação um momento impossível de magia. Acontece. Tudo acontece à minha volta. Nada se desvanece em mim. Apenas os contornos de um corpo que já não o é. Apenas a minha alma, em liberdade, planando sobre a ausência de cor de um mar sem horizonte, salpicado de estrelas. Apenas eu, dissolvida no mundo, rosto de todos os rostos. Uma estrela do mar, sem constelação, vista da terra, desalinhada no céu.

...

quinta-feira, 7 de junho de 2012

maré

...

caiu uma estrela sobre o mar
pó de ouro fez-se prata, fez-se areia
em memória dos tempos em que a via brilhar no céu
o mar fez-se onda
e nunca mais deixou de a beijar

...

domingo, 3 de junho de 2012

H mudo

...



Há o sol a serpentear pelo teu corpo 
acabou de ser beijado pelos meus lábios


Há a brisa a afagar o teu rosto
já desalinhou os meus cabelos


Há o silêncio que saboreias
e
já sentido na minha língua


Há o odor a maresia que respiras
o mesmo que respirei sem ti


o teu tempo não é o meu tempo


desfizemos nele o nosso abraço


façamos agora
amor
e
o nosso laço


...