quarta-feira, 28 de novembro de 2012

os palhaços

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traço a baton vermelho o sorriso que me foi roubado
o espelho... o velho espelho parece desbotado
no rosto ausente adivinho um olhar desprovido de mim
já não estou no meu quarto, já não estou nesta terra
só os meus braços cansados continuam na luta
nesta pátria que já não é mãe, apenas puta
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sexta-feira, 23 de novembro de 2012

o passeio da sombra

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As suas pernas gigantes cortavam as ruas da cidade. Lábios cerrados como punhos, proibindo-se a si mesmo um sorriso. Atravessou estradas, avenidas, jardins. Nunca se cansava, nunca parava para ver a vida à sua volta. Continuava o caminho, por sua conta, batendo às portas, procurando um espaço por onde pudesse entrar. Um lugar existiria onde coubesse o seu ego. Uma porta aberta, uma frincha de janela ou os braços de uma mulher. Algo se abriria à sua frente. Na avidez da busca afastava tudo o que impedisse o caminho, calcava relva fresca, pisava flores. Só o vento se abria a si. Só o vento. Tonto e ofegante percebeu que uma ave estava caída no chão. Um pequeno pássaro, talvez um pardal comum. Se não parasse, se não se desviasse do seu caminho obsessivo em direcção a nada, esmagá-lo-ia. Parou. Olhou a pequena ave por momentos, semi-cerrando os olhos. Podia ter-se curvado, tomado o pequeno e indefeso ser nas suas mãos, tê-lo beijado e lançado ao vento. Ao mesmo vento que se abria no seu caminho. Deu-lhe um pontapé, desviando o olhar. Esperou para ouvir os aplausos da claque. Agradecendo, continuou o caminho, de mãos nos bolsos, na direcção de lado nenhum, na busca de ninguém, sem nunca abrir os lábios.

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sábado, 17 de novembro de 2012

desencarne

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quero morrer num sábado, em pijama, robe e pantufas, sem tirar do rosto a pintura que sobrou da noite, ainda cheirando a fumo, a calor e a suores.
quero morrer assim, num bocejar, sorrindo, deixando por beber o copo de água e por lavar do corpo os traços com que me pintaste.

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domingo, 11 de novembro de 2012

cruzar os braços

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Vestiu-se sem cor. Lá fora, o dia não amanheceu, tudo estava como na noite anterior. Afinal, tanto barulho, tanto vento e tanta chuva que caiu sobre a cidade... tantos panos negros cobriram os edifícios e as pessoas... e todos estavam nos mesmos lugares, apenas rasgados.
Rasgou-os a fúria do vento, a inevitabilidade da chuva e as lágrimas de angústia por entre gritos de revolta... palavras de ordem desprovidas de esperança.
Agora, a cidade amanhecia lenta e muda. A falta de pão era a mesma do dia anterior, a falta de liberdade dissimulada da mesma maneira.
Nos rostos estava desenhada a traços de bofetadas, a humilhação de não ter pão, a culpa que uns esculpiram nas almas de tantos.
A cidade era habitada por um povo agrilhoado em si.

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quarta-feira, 7 de novembro de 2012

a cor de tudo

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... acordou despida. A tristeza que vestia desde o fim do Verão fora finalmente para lavar. Não vestia nada,   sem frio viu-se nua, desenhou um pequeno sorriso, sem esforço, natural... e surgiu assim uma vontade de pintar o mundo à sua vontade!


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terça-feira, 6 de novembro de 2012

a última fonte



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Ainda de toalha nas mãos observa o rosto, observa os rios traçados pelas lágrimas. Baixa a cabeça, a fim de se certificar que o resto do corpo ainda existe. Repara no peito: aberto, em ferida. Entre o músculo pulsando débil e o próprio sangue à procura do caminho, reparou no coração. Sozinho,  isolado de todo o caos que o rodeava, batia... os rios traçados pelas lágrimas no rosto, convergiam para ele, lavrando caminhos, abrindo sulcos onde nunca viriam a ser lançadas sementes, por já não serem terreno fértil. A fonte secara.

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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

a fonte

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Usou as lágrimas, foi com elas que se lavou. Cobriu o rosto com uma toalha macia e esperou. Esperou que tudo secasse. Sentiu secar-se o corpo, sentiu secar-se a face. Arriscou levantar uma ponta da toalha: as lágrimas continuavam a brotar e o rosto continuava por lavar. Os seus olhos eram "A Fonte". A mesma fonte que era parte das suas histórias de infância, daquelas histórias guardadas nos cantos mais longínquos da memória... a fonte coberta de musgo, de onde sempre brotava água fresca. O secar da fonte era ter a morte por certa. 
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