sábado, 29 de dezembro de 2012

e eu não sei

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deram-me o ar,
um único sopro varreu-me o corpo

sacudi as luzes, misturei cores
desenhei-me limites e fronteiras

vi a vida à minha frente e fechei-lhe os olhos

não, não é a vida que eu quero
não são os beijos como bofetadas

não são os limites nem as fronteiras

eu quero é voar
pois se para isso recuso respirar

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quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Claire de Lune


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esta Lua é Cheia
prenhe de astros e constelações
transborda de Luz, rasga-se no próprio parto
navega sem saber se o que pisa é mar, rio ou chão
sabe qual é o seu destino
falta-lhe o caminho

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terça-feira, 25 de dezembro de 2012

balanço

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Faço a minha vida num corredor de portas entreabertas, de espelhos ausentes de imagens que se projectam a si mesmos, vazios. 

O som dos meus passos ecoa pelo corredor, em direcção ao sitio onde pairam todos os sons não alcançados pelo ouvido humano.

Estarei a meio do caminho? Nunca o saberei. Chegou a hora de fechar as portas que deixei para trás, entreabertas. Não abrem, não fecham, delas nunca nada saiu nem nunca nada entrou. Apenas estão entreabertas porque são portas, foram criadas para isso, não para que eu as transpusesse. 

Não, aquelas portas não são para mim. Foram apenas um vislumbro do mundo a que eu gostaria de ter pertencido. Delas saem vozes, luzes, gargalhadas, música e aplausos. 

Algumas quase transpus, ilusão de óptica num corredor de vida monótono e repetitivo. 

Outras desejei tanto transpor que me tornei ridícula.

Baixo o olhar e fecho-as, sei que não voltarão a entreabrir-se. O corredor que me resta é feito de portas fechadas. 

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domingo, 23 de dezembro de 2012

tempestade em terra

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esta é a cidade que me engole
e escorraça
em dias de chuva e vento
este é o rio que me abraça
nas noites vazias

é daqui que fujo e nem me despeço

fujo de mim
da corrida dos outros
dos corpos moribundos em que tropeço

onde me poderei esconder, se já não sou eu, Lisboa?

onde me leva a fuga, se já partiu o abrigo?

vou
sempre vou
sem saber se regresso...

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domingo, 16 de dezembro de 2012

epílogo

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Desvanecem-se as linhas com que te escrevi
apaga-se a memória
revivo os beijos que me faltaram e os abraços fingidos
oiço as palavras que nunca disseste, ecoam por mim
fogem-me os sons, esbatem-se as cores
visto-me de nevoeiro
idiota eu que te inventei
idiota que acreditei na minha própria história
e num fogo factuo de ti
o tempo cumpre-se sem se renovar
sem amanhã
é esta a memória que resta
o silêncio, a ausência de um sorriso
... a ausência...






... todas as histórias inventadas começam por "Era uma vez?"
- Não, muitas  começam por: " ...que as estrelas brilhem sempre em nós!"


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terça-feira, 11 de dezembro de 2012

minguante

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Desço a Rua Garrett. As luzes de Natal enfeitam o meu anoitecer. Este ano visto-me de penumbra. Passeio numa cidade onde não me aconchego, não me encaixo neste falso brilhar. A minha imagem não é reflectida nas montras enfeitadas de coisas inúteis e caras. Não distingo o idioma dos turistas que me atravessam. Já não faço parte deste lugar. Vivo de favor, emprestada, nesta cidade que já senti a minha casa.



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sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

heróis

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O menino tem brilho no olhar, o tal brilho emprestado pelas lágrimas que o tempo fez cristalizar. Na seda da sua pele moram vincos gravados na crueldade de rasgar. Cresceu, o menino. Fez-se homem, daqueles com o tal brilho no olhar. Daqueles que são homens para além da pele, para além da carne. Fez-se homem com menino no olhar.



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terça-feira, 4 de dezembro de 2012

sorriso perpétuo

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Depois de muitos anos em fuga, soube que a hora tinha chegado. Sentou-se sobre a cama, descalçou os sapatos rotos e cansados. Fechou os olhos, respirou fundo. O ar cortou-lhe os pulmões. Quis deitá-lo fora, como um veneno de sabor amargo. Não conseguiu. Quis abrir os olhos, como se daí viesse luz. Não se abriram. Os braços, as mãos, os dedos, não lhe pertenciam. Deixou-se cair, de costas sobre a cama, como um peso morto. Isso ainda conseguiu fazer... ou apenas aconteceu porque assim ditava a lei da gravidade. Tentou gritar por socorro. Não localizou o próprio rosto. Lembrou-se de todos os lábios que beijou na sua longa vida. Lábios ávidos e sedentos, lábios húmidos e entreabertos, lábios secos e sem expressão, lábios com pressa de chegar a outro lado, lábios sem vontade de chegar a lado nenhum, lábios pagos para beijar, lábios...
Todos estavam de acordo e balbuciavam com o respeito absurdo conquistado pelos mortos: - Parece até sorrir!

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