...
posso
ver contigo os filmes a preto e branco
sorrir com o Astaire ou com o Gene Kelly
emocionar-me com a aventuras do Errol Flynn
e concordar que o melhor Tarzan é o Weissemuller
posso
ouvir as tuas histórias
acreditar que as tropelias de Charlot são as tuas
acordar com um chocolate sobre a almofada
e rir por a tua açorda cheirar a caracóis
posso
lembrar-me de um homem bom
de um lutador
um menino voador nos seus sonhos
do cheiro a tinta e a aguarrás nas tuas mãos
as mãos do "homem mais rico do mundo"
e manter
viva a lembrança
de ti
...
segunda-feira, 30 de dezembro de 2013
quarta-feira, 25 de dezembro de 2013
alerta
... baixando-se apanhou a beata ainda acesa do chão. Ergueu-se lentamente, segurando-a entre os dedos, protegendo a fraca chama do vento e da chuva. Alerta laranja. A cidade estava em alerta laranja. A chama da sua beata, laranja. Fechando os olhos levou-a aos lábios. Apertou-a, respirou-a como se fosse o seu último trago de ar. O fumo invadiu-lhe o peito, queimando tudo à sua passagem. Suspendeu a respiração, deixou turvar-se o cérebro, as lembranças, o futuro vazio. Hirto, parecia deixar-se tombar. A parede amparou-o. Os olhos continuavam fechados. As rugas desenhavam um falso sorriso. Viu-se numa sala de jantar, viu-se no cristal dos copos meios de vinho, meios de nada. Viu-se na prata dos talheres e no tilintar das loiças. Sacudiu-se no linho branco dos guardanapos sobre o colo. Ao seu lado, de pé e pela direita, serviam-no, de libré. Cada colherada de sopa caia no vazio. No vazio de um prato, no vazio de uma mesa, no vazio de si. O vinho entornou-se. Manchou de tinto a toalha branca, as calças negras, os punhos bordados. Deixou-se escorregar pela parede. Agachou-se no chão coberto de folhas molhadas. O vento arrancou-lhe a beata dos dedos cansados. Ainda acesa tombou sobre o lixo da véspera. Laços dourados, caixas e papéis coloridos. Vermelho. A cidade passou a alerta vermelho.
...
domingo, 15 de dezembro de 2013
re de coração
...
Casaco comprido, cinzento de olhar, coçado e gasto a condizer com o rosto, Belinda senta-se no seu banco do jardim de todos. Arruma à sua volta os sacos, as mantas e os trapos. Se não chover, será ali que irá pernoitar.
A noite espreita. O burburinho do trânsito desvanece-se. Os transeuntes aceleram o passo, fogem do sol - pôr, como se ser surpreendido pela noite, ainda fora de casa fosse uma praga, uma maldição. Há que fugir e depressa, não vá a escuridão abater-se sobre os sacos de compras e os seus laços brilhantes, não vá o brilho caro esmorecer.
Belinda ajeita-se. Nidifica naquele banco. Torna-o a sua casa. Observa as árvores, seu tecto.
Devia mandar pintá-las de outra cor, já me cansa este verde. Ou podia pendurar-lhes umas estrelas.
Passa um homem, baixo, agasalhado até ao nariz e apressado, muito apressado. As mãos nos bolsos empurravam o sobretudo à sua frente.
Amigo, assim o sobretudo chega a casa primeiro que tu!
Belinda julgou ter pensado, mas não pensou, disse. Apesar de não se ter ouvido a si mesma. Pois se o homem lhe respondeu, foi porque o pensamento se fez voz, sem a sua autorização.
Amigo?! Felizmente nunca o fomos.
Resmungou, prosseguindo a sua corrida para fora da noite, à velocidade da resposta.
Nunca se sabe, amigo. Sabes lá se não fomos amigos em tempos! Por acaso não te lembras de mim? Ora olha bem para mim e responde.
O homem pára, olha o enorme trapo cinza.
Não me parece. Não tenho amigos que tenham acabado assim.
Assim como?
Assim, nessa miséria!
A própria articulação da palavra custou-lhe, pareceu cuspir o som.
Achas que me acabo na minha miséria? Não sejas melodramático, amigo! Não é nos meus pertences nem na sua ausência que me acabo. Anda cá. Senta-te aqui ao pé de mim.
O pequeno homem olha em volta, não vá ser visto por alguém. Engole em seco, respira fundo, fecha os olhos e abre-os de novo, atreve-se. Senta-se ao lado de Belinda. por precaução não a olha, finge-se indivíduo, ali sentado, olhar fixo, em frente, para coisa nenhuma.
Belinda olha-o, divertida com a atrapalhação, feliz por uma companhia ali, a menos de meio metro de si mesma.
Amigo, olha para cima. Olha estas árvores. Tens árvores? Eu tenho, são o meu tecto. Até estou a pensar fazer umas melhorias... redecorar a minha casa. Ajuda-me. Fecha os olhos e imagina estrelas, sim, como aquelas lá longe, só que estas vão estar aqui, suspensas nos ramos, inventadas por nós dois. Por cima de nós. Consegues sentir o seu calor?
Ele encolhe-se, esperara um discurso absurdo, mas não deste género. Deixa-se levar, imagina-se banhado pelo brilho das estrelas acabadas de acender por aquela mulher estranha. Mantém os olhos fechados, parece até sorrir.
Belinda observa-o, enternecida.
Agora abre os olhos e olha para os meus. Isso... olha bem. Diz-me se vês aqui alguma miséria.
Embargado, acena que não. Mergulha no olhar de Belinda e deixa-se levar. Flutua nas ondas daquele mar de Inverno, rumo a um mundo desconhecido.
Belinda acorda-o do torpor e pede uma resposta.
Concordas com o que te disse?
Não tenho outro remédio...
...
Casaco comprido, cinzento de olhar, coçado e gasto a condizer com o rosto, Belinda senta-se no seu banco do jardim de todos. Arruma à sua volta os sacos, as mantas e os trapos. Se não chover, será ali que irá pernoitar.
A noite espreita. O burburinho do trânsito desvanece-se. Os transeuntes aceleram o passo, fogem do sol - pôr, como se ser surpreendido pela noite, ainda fora de casa fosse uma praga, uma maldição. Há que fugir e depressa, não vá a escuridão abater-se sobre os sacos de compras e os seus laços brilhantes, não vá o brilho caro esmorecer.
Belinda ajeita-se. Nidifica naquele banco. Torna-o a sua casa. Observa as árvores, seu tecto.
Devia mandar pintá-las de outra cor, já me cansa este verde. Ou podia pendurar-lhes umas estrelas.
Passa um homem, baixo, agasalhado até ao nariz e apressado, muito apressado. As mãos nos bolsos empurravam o sobretudo à sua frente.
Amigo, assim o sobretudo chega a casa primeiro que tu!
Belinda julgou ter pensado, mas não pensou, disse. Apesar de não se ter ouvido a si mesma. Pois se o homem lhe respondeu, foi porque o pensamento se fez voz, sem a sua autorização.
Amigo?! Felizmente nunca o fomos.
Resmungou, prosseguindo a sua corrida para fora da noite, à velocidade da resposta.
Nunca se sabe, amigo. Sabes lá se não fomos amigos em tempos! Por acaso não te lembras de mim? Ora olha bem para mim e responde.
O homem pára, olha o enorme trapo cinza.
Não me parece. Não tenho amigos que tenham acabado assim.
Assim como?
Assim, nessa miséria!
A própria articulação da palavra custou-lhe, pareceu cuspir o som.
Achas que me acabo na minha miséria? Não sejas melodramático, amigo! Não é nos meus pertences nem na sua ausência que me acabo. Anda cá. Senta-te aqui ao pé de mim.
O pequeno homem olha em volta, não vá ser visto por alguém. Engole em seco, respira fundo, fecha os olhos e abre-os de novo, atreve-se. Senta-se ao lado de Belinda. por precaução não a olha, finge-se indivíduo, ali sentado, olhar fixo, em frente, para coisa nenhuma.
Belinda olha-o, divertida com a atrapalhação, feliz por uma companhia ali, a menos de meio metro de si mesma.
Amigo, olha para cima. Olha estas árvores. Tens árvores? Eu tenho, são o meu tecto. Até estou a pensar fazer umas melhorias... redecorar a minha casa. Ajuda-me. Fecha os olhos e imagina estrelas, sim, como aquelas lá longe, só que estas vão estar aqui, suspensas nos ramos, inventadas por nós dois. Por cima de nós. Consegues sentir o seu calor?
Ele encolhe-se, esperara um discurso absurdo, mas não deste género. Deixa-se levar, imagina-se banhado pelo brilho das estrelas acabadas de acender por aquela mulher estranha. Mantém os olhos fechados, parece até sorrir.
Belinda observa-o, enternecida.
Agora abre os olhos e olha para os meus. Isso... olha bem. Diz-me se vês aqui alguma miséria.
Embargado, acena que não. Mergulha no olhar de Belinda e deixa-se levar. Flutua nas ondas daquele mar de Inverno, rumo a um mundo desconhecido.
Belinda acorda-o do torpor e pede uma resposta.
Concordas com o que te disse?
Não tenho outro remédio...
...
sábado, 23 de novembro de 2013
fogo fátuo
...
esta noite
não foi de chuva
nem de estrelas
foi fogo
em pedaços
explosão rasgada do teu peito
tão perto de alcançar os céus
tão perto de ser via láctea
cobriu de luz toda a cidade
aqueceu as mãos geladas e sós
os sorrisos brilharam
assim
molhados de fogo
as mãos
tocaram-se
iluminando
os corpos
livraram-se das roupas
e gargalhadas soaram na noite fria
...
esta noite
não foi de chuva
nem de estrelas
foi fogo
em pedaços
explosão rasgada do teu peito
tão perto de alcançar os céus
tão perto de ser via láctea
cobriu de luz toda a cidade
aqueceu as mãos geladas e sós
os sorrisos brilharam
assim
molhados de fogo
as mãos
tocaram-se
iluminando
os corpos
livraram-se das roupas
e gargalhadas soaram na noite fria
...
terça-feira, 12 de novembro de 2013
aconchego
...
Dei várias voltas ao bairro. E à cabeça. Pisei calçada e cascalho.
O corpo cansou-se.
Por vezes uns sobressaltos, como se uma bateria pedisse para ser recarregada.
Umas luzes a brilhar na noite escura, por breves instantes. Podiam ser estrelas. Podiam brilhar há milhões de anos atrás. Só agora as vejo, nada me garante que ainda lá estejam.
O Universo não passa de um bolo de aniversário, cheio de velas desengonçadas, mas persistentes. Não basta um sopro para as apagar. As suas chamas sobrevivem aos perdigotos cuspidos, aos dedos que as apertam.
Cheiram a pavio queimado. Cheiram a baunilha.
Chego a casa. Não está iluminada.
Fria, desabitada.
Acendo as luzes, tomo um banho quente. Lavo o corpo, lavo a alma.
Arregaço as mangas e vou para a cozinha. Preparo um bolo. Outro bolo. Um bolo novo. De chocolate.
Abro as janelas, estico os braços e apanho uma mão-cheia de estrelas.
Não me faltarão velas.
...
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
às cambalhotas na tumba com Popper
...
Já o dia ia a meio quando vi que era falso. Foi um susto, o coração a pular no peito, parvo, como se tivesse vontade própria, como se fosse cérebro. Não me perdoei o engano, como me deixei enganar, como foi possível não ter reparado no falso amanhecer. Tudo parecia tão real. Tudo parecia ter forma e vida. Afinal, nenhuma das palavras que disse era audível, nenhuma das palavras que ouvi foi dita. Nada do que vi aconteceu e nada do que aconteceu foi alguma vez visto. Julguei que ia envelhecer sem medos, na tranquilidade sábia de uma vida vivida e verdadeira, que se cumpria lentamente. Estava errada. Nada foi verdadeiro e nada foi falso. Os dias que restam são incertos, sem anoitecer, sem amanhecer. Assustadoramente falsos.
...
Já o dia ia a meio quando vi que era falso. Foi um susto, o coração a pular no peito, parvo, como se tivesse vontade própria, como se fosse cérebro. Não me perdoei o engano, como me deixei enganar, como foi possível não ter reparado no falso amanhecer. Tudo parecia tão real. Tudo parecia ter forma e vida. Afinal, nenhuma das palavras que disse era audível, nenhuma das palavras que ouvi foi dita. Nada do que vi aconteceu e nada do que aconteceu foi alguma vez visto. Julguei que ia envelhecer sem medos, na tranquilidade sábia de uma vida vivida e verdadeira, que se cumpria lentamente. Estava errada. Nada foi verdadeiro e nada foi falso. Os dias que restam são incertos, sem anoitecer, sem amanhecer. Assustadoramente falsos.
...
sábado, 2 de novembro de 2013
ir
...
Olho-te nos olhos do teu azul encoberto. Uma lágrima solidificada cobre-te o olhar, à força de nunca ser sido derramada. - Um homem não chora. - Tornou-se cortina, essa lágrima. Véu baço entre ti e o mundo que te deram a ver. Fronteira calcificada da tua própria alma. - Olhos que não vêm, coração que não sente.- Sentes a pele, sentes o calo, a dor que te corrói os ossos e não passa. O aperto que não te deixa o coração em sossego... e esses olhos, mesmo fechados, não dormem, nem se deixam apagar. Deixaste-me as palavras, cravadas no silêncio, viajadas no tempo. Nos meus sonhos, liberto-as das nossas mãos, ecoam pelo mundo inteiro: Partiste sem voar!
...
domingo, 27 de outubro de 2013
à espera...de rosa
...
Esperei por este dia, sentada no último degrau da escadaria de mármore rosa. Vi passarem os dias e as estações. Passou o tempo e tudo passou. Eu fiquei. Fiquei. Eu e a vida. Eu e o mundo todo. Quando me levantei, já não me lembrava o corpo, nem os movimentos possíveis. Imaginei cordas e inventei-me marioneta. Torpe, desengonçada, sem fala. Só o coração manteve o seu ritmo, ancestral, tribal. Para lá do meu corpo, silêncio. Foi muda que imaginei pássaros e cantei. Dançando, libertei-me das amarras e voei. Passei pelos dias e pelas estações, passei pelo tempo e tudo passou em mim.
...
domingo, 13 de outubro de 2013
(quando) a terra se (me) acaba
...
Olho para baixo, na esperança de ver o mundo. Apenas umbigo. Para baixo, apenas vejo o meu umbigo, sinal irrefutável de um dia ter habitado um ventre. Para lá deste umbigo, vejo escarpas aguçadas e escuras, espuma branca de ondas desfeitas, frustradas no tempo gasto desfazendo rochas, cavando grutas, derrubando falésias. E grito ao horizonte: - porque não te cansas de ser sempre linha? Porque não foges e não te dissipas na escuridão do universo? Engolido pelas trevas talvez uma dia sejas cama, albergando estrelas. Vai!
...
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
estilhaços
...
vejo o mundo em escala cinza
sem som
à velocidade do coração
não fosse a silhueta de um piano
as tosses na plateia
o ruído de papel de rebuçado
e não suportaria a espera
...
vejo o mundo em escala cinza
sem som
à velocidade do coração
não fosse a silhueta de um piano
as tosses na plateia
o ruído de papel de rebuçado
e não suportaria a espera
...
quarta-feira, 2 de outubro de 2013
... em sol menor
em fuga
procuro-me nas prateleiras de um supermercado, nas montras das lojas. Um sinal de que o mundo sabe da minha existência. Nem que para isso tenha que dar dinheiro ou oferecer a desconhecidos o que eu gostaria de um dia receber. Nem a casa dos espelhos numa feira consegue reflectir a ausência que carrego comigo.
cansada
encontro uma parede onde me encostar, aliviando por breves momentos o fardo da solidão.
deslizo, em direcção ao chão molhado e fico sentada. Olho o vazio e vejo os rostos que se dirigem noutras direcções, disfarçando o embaraço. Vão carregados de compras, presentes e embrulhos. fogem da chuva como se fosse ácida, tão ácida como a sua inconsciência.
adormeço
enquanto a noite desce, enquanto o burburinho é abafado pelo ruído de talheres longínquos em mesas próximas. Já comia qualquer coisa, quanto mais não fosse um fragmento do pensamento dos que passam.
- você! Sim, você! Não tem outro sitio para onde ir curtir a piela?
era comigo. Alguém falou comigo! Não respondi, já era tarde, instalava-se o rigor mortis e eu ainda viva.
quinta-feira, 12 de setembro de 2013
sem nós
sem Nós
na liberdade nua de apenas uma
é na fuga que sou
na solidão de me afogar
na desistência apago-me
curvada pela dor das horas
tombo no final da corrida
longe da meta
- que não me cortem as asas
não vá um dia dar-me para voar
Só
segunda-feira, 26 de agosto de 2013
sol posto
...
há algo em ti
talvez a minha busca
incessante
ou a ausência
dessa tua melodia
constante
algo fica
algo parte
uma porta por fechar
um objecto esquecido
uma carruagem por fim vazia
há algo em ti
imensurável
que sopra o meu mundo e o apaga
talvez a tua pele
inebriante
ou o fogo
cego do teu olhar
num beijo para sempre
adiado
- deixa-me o odor de pavio queimado
não mo arranques neste abraço!
...
há algo em ti
talvez a minha busca
incessante
ou a ausência
dessa tua melodia
constante
algo fica
algo parte
uma porta por fechar
um objecto esquecido
uma carruagem por fim vazia
há algo em ti
imensurável
que sopra o meu mundo e o apaga
talvez a tua pele
inebriante
ou o fogo
cego do teu olhar
num beijo para sempre
adiado
- deixa-me o odor de pavio queimado
não mo arranques neste abraço!
...
quinta-feira, 1 de agosto de 2013
poema feito de Nós
...
na história de Nós
há um barco sem velas, à deriva
uma orquestra a tocar
há lençóis que se enleiam
na turbulência de uma dança que é nossa
acordamos desejos, unimos ventres
murmurando que somos Nós os amantes
navego-te como quem amanhece
e criamos
a pinceladas de fúria, uma nova rota da seda
avivamos sabores tontos de tantos odores
soamos a blues embriagados, a baladas, a fados
inventamos Nós, tecemos o nosso agasalho
feito de corpo rasgado
acabamos o silêncio, conquistamos os castelos
dissipa-se o cansaço nos vapores do álcool
somos heróis vencedores e vencidos
lábios da mesma boca, verbo de amar
cegos
por não nos faltar o olhar e vermos este Sol
... brilhou a noite toda!
...
quinta-feira, 18 de julho de 2013
sem rede
...
Hoje acordei borboleta
ainda meia larva,
atrapalhada,
lerda e tonta de luz
esvoacei em círculos,
tropecei nas próprias asas,
cai em pirueta
nas tuas mãos abertas,
em concha
para me amparar
aconcheguei-me e fiz-me gata
fiz-te dono
na preguiça de acordar,
na delicia de te tocar
esvoaçámos juntos,
fizemos malabarismos e danças malucas
em queda livre,
até a alma planar
e voltei a ser borboleta
a serpentear no teu olhar
fiz-me larva,
escondi-me
fiz de ti o meu casúlo
amanhã voltaremos a acordar
...
Hoje acordei borboleta
ainda meia larva,
atrapalhada,
lerda e tonta de luz
esvoacei em círculos,
tropecei nas próprias asas,
cai em pirueta
nas tuas mãos abertas,
em concha
para me amparar
aconcheguei-me e fiz-me gata
fiz-te dono
na preguiça de acordar,
na delicia de te tocar
esvoaçámos juntos,
fizemos malabarismos e danças malucas
em queda livre,
até a alma planar
e voltei a ser borboleta
a serpentear no teu olhar
fiz-me larva,
escondi-me
fiz de ti o meu casúlo
amanhã voltaremos a acordar
...
domingo, 14 de julho de 2013
os sós e os outros
Todos as semanas havia um dia em que a cidade era inundada por gritos de socorro. Os habitantes fingiam não ouvir. Uns reuniam-se em templos, calando os seus próprios gritos em uníssono com cantares de esperança. Outros, vestiam a melhor roupa e deambulavam em silêncio, procurando um lugar bonito que abafasse o grito que lhes apertava o peito. Também havia quem se escondesse numa sala de cinema, a salvo de olhar e ser olhado. Estes eram os Sós, os sempre Sós ou os Sós que faziam parte do horário de expediente daqueles que saiam a dois ou em grupo, em família.
Os outros, os que saiam a dois ou em grupo ou em família, calavam o seu grito de socorro, respiravam-no por todos os poros, mas negavam-no, em silêncio. Quando se cruzavam por um dos Sós deixavam escapar um olhar de inveja, por tanta tranquilidade e tanta paz, ignorando que também eles estavam ali calando o seu próprio grito, julgando ver nos Sós a liberdade que eles não tinham ou perderam um dia. Do mesmo modo, sempre que um Só se cruzava com um dos outros, dos que saem a dois, em grupo ou em família, suspirava de tristeza, desejando ser como os outros, desejado e não esquecido.
Nunca foi encontrada moral para esta história que um Só inventou num dos dias em que a cidade foi inundada por gritos de socorro. Nunca se chegou a saber quem vivia mais feliz, se os Sós, se os Outros, porque nem os Sós nem os Outros se sentiam amados... nem livres.
domingo, 7 de julho de 2013
dias perdidos
...
Num dia podia morrer
tudo ficaria igual
Os amores por fazer,
os beijos por dar
as viagens
os caminhos por percorrer
Sim...podia morrer
morreria feliz
na consciência
tudo por terminar
na certeza
nada nem ninguém ficaria a perder
Ou talvez não
talvez deixar-me pasmar
no calor de um domingo
sem esconder o sol
deixá-lo queimar-me o corpo
fintar as ondas do mar
não vá apagar-se o fogo posto
Ou desejar mais um dia
jogar às escondidas com a vida,
desafiar a sorte
rir e gargalhar
à toa como um peso morto
afogar-me no fingimento
... só mais um dia...
Num dia podia morrer
tudo ficaria igual
Os amores por fazer,
os beijos por dar
as viagens
os caminhos por percorrer
Sim...podia morrer
morreria feliz
na consciência
tudo por terminar
na certeza
nada nem ninguém ficaria a perder
Ou talvez não
talvez deixar-me pasmar
no calor de um domingo
sem esconder o sol
deixá-lo queimar-me o corpo
fintar as ondas do mar
não vá apagar-se o fogo posto
Ou desejar mais um dia
jogar às escondidas com a vida,
desafiar a sorte
rir e gargalhar
à toa como um peso morto
afogar-me no fingimento
... só mais um dia...
sábado, 29 de junho de 2013
sem rede
...
Nasces e choras.
Perdes a conta dos dias de lágrimas.
Dos dias sem chão.
Perde-se o nome dos lábios dissolvidos no vinho que bebes
e desejas beijar.
Soltam-se as amarras que te impedem de voar
e renova-se a sede.
Irá despedaçar-se a marioneta?
Ou dançará nas nuvens, o trapezista sem rede?
...
Nasces e choras.
Perdes a conta dos dias de lágrimas.
Dos dias sem chão.
Perde-se o nome dos lábios dissolvidos no vinho que bebes
e desejas beijar.
Soltam-se as amarras que te impedem de voar
e renova-se a sede.
Irá despedaçar-se a marioneta?
Ou dançará nas nuvens, o trapezista sem rede?
...
segunda-feira, 24 de junho de 2013
sem lua
...
Ouviu que se fez Lua.
Uma Lua grande e Cheia, rara de ver.
E fez-se Lua.
Pontualmente.
Banhou o mundo de luz, revelou na noite sombras de prata.
Tudo isto passou-se na sua imaginação, trancada no quarto mais escuro de si.
Sem olhos que a vissem, num grito mudo de dor, arranhou as paredes brancas.
Dedos em sangue, com eles desfez os contornos do rosto,
recordação esbatida de si,
o rosto que ninguém vê, esquecido nas andanças da vida,
perdido nas noites sem ciclo lunar.
Num tempo fora do seu tempo.
Desenhado, sem luz.
Muda, não se fez ouvir.
Cega de não ser vista.
Só não a abandonou a Lua que inventou para si e impossível de partilhar.
Abraçada pela solidão da sua loucura vã,
fez-se de lágrimas, de sangue, de vazio,
na noite de Lua extinta.
...
segunda-feira, 10 de junho de 2013
à solta
todas as manhãs sonha um beijo
um beijo de acordar
murmúrio de vida
sem segredo
sem rosto, sem nome
um beijo apenas
feito de tudo o que se fazem os beijos
sem futuro, sem passado
um beijo de desejo
de não ficar
e soltar
a sede
e o sabor
segunda-feira, 27 de maio de 2013
o sem hoje
...
O mesmo corpo de sempre, à mesma hora, na mesma posição, coberto pelo mesmo oleado... não estivesse a policia a vigiar e os olhares de sempre passariam indiferentes.
A paisagem urbana foi alterada por qualquer força da natureza: hoje todos olham na mesma direcção.
A única diferença é que hoje, dois agentes tomam conta dele, protegem-no, não se sabe do quê... dos olhares absurdos? Não vá o homem ser incomodado ou a sua alma roubada.
Hoje, ele é importante e destaca-se na multidão,
ninguém sabe o seu nome, mas numa rua de vivos, é ele o morto!
...
sexta-feira, 17 de maio de 2013
vendaval
...
é este tempo que me inquieta... e falta
feita de retalhos
costuro-me
no desenho desta viagem vazia
feita de vento
sem rumo, sem futuro
sou perdida
no lugar onde se acaba o tempo
sou de trapo
no tempo onde paira a última gargalhada
sou rasgada
e ainda sinto, no rosto
a bofetada
...
é este tempo que me inquieta... e falta
feita de retalhos
costuro-me
no desenho desta viagem vazia
feita de vento
sem rumo, sem futuro
sou perdida
no lugar onde se acaba o tempo
sou de trapo
no tempo onde paira a última gargalhada
sou rasgada
e ainda sinto, no rosto
a bofetada
...
domingo, 12 de maio de 2013
... im...
...
de um sopro apaguei a Lua
e dormi
coberta de estrelas
cheiro de alecrim
sonhei que era tua
sem deixar de ser de mim
e de ti
livres
açambarcando o universo inteiro
neste nosso frenesim
porque a vida é hoje
o futuro agora
e o amor não se desperdiça assim
...
sexta-feira, 3 de maio de 2013
Voo
...
voo
não sei o caminho
não sei onde me levo nem com que fim
mas voo
não sei se é a paz que desejo
se é a liberdade em que me transbordo
fugindo de mim e do que é corpo
faço-me fantasma do meu navio
carga bruta, morta e muda de mim
e voo
levada pelo vento
sou a carga, fardo desfeito do que não fui
o nó da corda que me liberta
do que não sou
e voo
e vou
...
voo
não sei o caminho
não sei onde me levo nem com que fim
mas voo
não sei se é a paz que desejo
se é a liberdade em que me transbordo
fugindo de mim e do que é corpo
faço-me fantasma do meu navio
carga bruta, morta e muda de mim
e voo
levada pelo vento
sou a carga, fardo desfeito do que não fui
o nó da corda que me liberta
do que não sou
e voo
e vou
...
sexta-feira, 26 de abril de 2013
(des)enlace
...
Sopras
apagando a vela
e viras o corpo para o outro lado
Bailas no ar
de cheiro a cera queimada
Olhas-me
e não me vês
na cega embriaguez de um fogo fátuo
Fazes-me cinza
nas labaredas da chama de fénix que foste
e já não és
Adormeces
na ausência, na ausência de cor e luz
na mudez do suor libertado pela luta dos corpos
e já não soas
aos sonhos de outro lugar
daquele lugar onde sempre nos desencontrámos
Só nos restam os lençóis rasgados
e o odor esquecido a sexo e a pavio
e já não somos
o tal amor que não se fez e nunca aconteceu
Neste caminho que não é teu
Nem meu
...
Sopras
apagando a vela
e viras o corpo para o outro lado
Bailas no ar
de cheiro a cera queimada
Olhas-me
e não me vês
na cega embriaguez de um fogo fátuo
Fazes-me cinza
nas labaredas da chama de fénix que foste
e já não és
Adormeces
na ausência, na ausência de cor e luz
na mudez do suor libertado pela luta dos corpos
e já não soas
aos sonhos de outro lugar
daquele lugar onde sempre nos desencontrámos
Só nos restam os lençóis rasgados
e o odor esquecido a sexo e a pavio
e já não somos
o tal amor que não se fez e nunca aconteceu
Neste caminho que não é teu
Nem meu
...
sábado, 20 de abril de 2013
enjaulada
...
de ser mulher sobro-me
e não me encontro
perco-me nas ausências
no turbilhão da cidade
não é ar o que respiro
nem "Bons dias!" o que desejo
é o grito amordaçado
é a solidão que bebo
sem vinho, sem copo
de ser mulher desconcerto-me
e nem sei se amo
se fujo
são os olhos que não me vêm,
são as mãos que não me tocam,
nesta pele que visto
à deriva
nos rios salgados
de lágrimas choradas
...
de ser mulher sobro-me
e não me encontro
perco-me nas ausências
no turbilhão da cidade
não é ar o que respiro
nem "Bons dias!" o que desejo
é o grito amordaçado
é a solidão que bebo
sem vinho, sem copo
de ser mulher desconcerto-me
e nem sei se amo
se fujo
são os olhos que não me vêm,
são as mãos que não me tocam,
nesta pele que visto
à deriva
nos rios salgados
de lágrimas choradas
...
quarta-feira, 17 de abril de 2013
voando
...
A pequena ave acordou com a voz do vento.
Segredava-lhe:
- Voa!
Deu umas tantas piruetas no ar.
Depois, o vento uivou:
- Mais longe!
Engoliu em seco, engoliu o coração que se preparava para saltar.
Atreveu-se a olhar mais longe.
- Mais longe!
E viu rochedos imponentes.
- Mais longe!
E viu mar.
- Mais longe.
E viu céu.
A pequena ave fechou os olhos e sem medo voou.
Voou mais longe!
Rumo ao horizonte.
Naquela linha não sabia o que ia encontrar,
se céu, se mar.
O vento levava-a ao som da palavra:
- Voa!
Para trás ficou o ninho,
a pequena aldeia de casas brancas.
Suspirou sem saudade.
Mergulhou no horizonte.
O céu engoliu o mar,
E o mar engoliu a terra,
Apagou-a da memória dos homens,
das casas, dos quintais,
dos risos distantes.
Agora só se lembra das janelas
que deixou
abertas.
...
A pequena ave acordou com a voz do vento.
Segredava-lhe:
- Voa!
Deu umas tantas piruetas no ar.
Depois, o vento uivou:
- Mais longe!
Engoliu em seco, engoliu o coração que se preparava para saltar.
Atreveu-se a olhar mais longe.
- Mais longe!
E viu rochedos imponentes.
- Mais longe!
E viu mar.
- Mais longe.
E viu céu.
A pequena ave fechou os olhos e sem medo voou.
Voou mais longe!
Rumo ao horizonte.
Naquela linha não sabia o que ia encontrar,
se céu, se mar.
O vento levava-a ao som da palavra:
- Voa!
Para trás ficou o ninho,
a pequena aldeia de casas brancas.
Suspirou sem saudade.
Mergulhou no horizonte.
O céu engoliu o mar,
E o mar engoliu a terra,
Apagou-a da memória dos homens,
das casas, dos quintais,
dos risos distantes.
Agora só se lembra das janelas
que deixou
abertas.
...
quarta-feira, 3 de abril de 2013
espelho meu
...
Ajeitou o cabelo, a gola da camisa, os punhos do casaco.
Olhou-se como se fosse olhada
com um sinal de aprovação, deu um passo para o lado, afastando-se,
inclinou-se para trás, certificando-se de que a imagem também se afastava.
Não podia esquecer-se dela, depois de tanto trabalho a aprimorar-se.
Enfeitada, foi para a rua. Procurava dois olhos,
dois olhos que a vissem, duas mãos que a afagassem.
Mais nada.
Caminhou durante horas, até chegar ao lago.
Olhou o fundo do lago como se ele a olhasse.
Acenou, dando um passo em frente, molhando os folhos da saia.
Inclinou-se sobre a água, molhando as mãos, mergulhando os punhos.
Procurava a imagem, a que julgava ter trazido consigo e ficou para trás.
Não a reconhecia, depois de tanto esforço para mudar,
para se afogar.
Flutuava sob o céu, sobre a água. Procurava a imagem
a imagem que a abandonara, numa bofetada imaginada.
Mais nada.
...
Ajeitou o cabelo, a gola da camisa, os punhos do casaco.
Olhou-se como se fosse olhada
com um sinal de aprovação, deu um passo para o lado, afastando-se,
inclinou-se para trás, certificando-se de que a imagem também se afastava.
Não podia esquecer-se dela, depois de tanto trabalho a aprimorar-se.
Enfeitada, foi para a rua. Procurava dois olhos,
dois olhos que a vissem, duas mãos que a afagassem.
Mais nada.
Caminhou durante horas, até chegar ao lago.
Olhou o fundo do lago como se ele a olhasse.
Acenou, dando um passo em frente, molhando os folhos da saia.
Inclinou-se sobre a água, molhando as mãos, mergulhando os punhos.
Procurava a imagem, a que julgava ter trazido consigo e ficou para trás.
Não a reconhecia, depois de tanto esforço para mudar,
para se afogar.
Flutuava sob o céu, sobre a água. Procurava a imagem
a imagem que a abandonara, numa bofetada imaginada.
Mais nada.
...
domingo, 31 de março de 2013
Pesah
...
Há manhãs que são de Carnaval
são manhãs tardias e escuras
mascaradas de um novo dia
silêncios mascarados de gargalhada
o som de talheres de prata
os cheiros de uma cozinha ausente
vinho brilhando nos copos de falso cristal
de falso é ali o mais real
...
Há manhãs que são de Carnaval
são manhãs tardias e escuras
mascaradas de um novo dia
silêncios mascarados de gargalhada
o som de talheres de prata
os cheiros de uma cozinha ausente
vinho brilhando nos copos de falso cristal
de falso é ali o mais real
...
domingo, 24 de março de 2013
num qualquer pontão
...
cobre-nos a velha manta
espessa
negra e vermelha
a mesma que abafa o universo
em horas de tormenta
esquecemos as cores e o ar que bebemos
queimamos por dentro
para nos apagarmos na onda
incendiamos caminhos
abrindo a pele
somos nós, mar adentro
navegando
na velha manta
a mesma onde guardamos os odores
e os sabores
esquecidos no abrigo
das horas ébrias
de desejo
e de sexo
...
quinta-feira, 21 de março de 2013
a ave
...
lívida, a mulher
não vive
respira
e não ama
foge-lhe o sangue
da ferida aberta
paira, a Ave
sedenta
voa em círculos
alimenta-se de silêncio
rasga o peito
a mulher
oferece-se assim
inteira
na ânsia de acabar
o tormento
sacia-se a Ave
grasnando ao vento:
Foi mais uma que cedeu!
e não morreu
...
lívida, a mulher
não vive
respira
e não ama
foge-lhe o sangue
da ferida aberta
paira, a Ave
sedenta
voa em círculos
alimenta-se de silêncio
rasga o peito
a mulher
oferece-se assim
inteira
na ânsia de acabar
o tormento
sacia-se a Ave
grasnando ao vento:
Foi mais uma que cedeu!
e não morreu
...
sábado, 9 de março de 2013
psyché
...
Naquele dia saiu da cama. Sentou-se em frente ao espelho, muito direita, branca e frágil, como a bailarina de loiça que rodopiava ao abrir a caixa de música. Fingiu lavar o rosto. Espalhou a base. Às rugas que ladeavam os olhos, juntou mais dois traços, estes pintados por si, a negro. Estes traços sabia-os ela. Entre cada gesto, uma paragem, um olhar no olhar reflectido. Uma interrogação. Como teria chegado ali? Os lábios. Agora contornava os lábios com lápis vermelho. Dessa forma encontrava a linha que deixa de ser rosto e passa a ser lábio, passa a ser boca. O bico do lápis levava a pele. Entreabertos, os lábios, recordavam o tempo dos beijos, da entrega, da dúvida que antecede o toque das bocas. Fechados os olhos, o lápis em suspenso. Uma pequena viagem à memória de ser mulher, à memória de toques de veludo, nos lábios, no rosto, no pescoço. Aqui arrepia-se, arrepia-se o corpo, de prazer, arrepia-se também o caminho para os seios. Ajeita-os no velho soutien branco de bordado inglês. Abre os olhos, vê-se de novo. Observa a maquilhagem. Falta a sombra, diz para si mesma. Em movimentos firmes, espalha o baton sobre os lábios. Ressuscitou assim a boca. Inicia o movimento que a levará a um sorriso. Falta a sombra, é verdade, falta a sombra... Tem o rímel nas mãos. Afaga as pestanas, parecem quase sorrir também. Um último retoque, o pó, que lhe retira qualquer ameaça de brilho que o rosto se lembrasse de inventar. Ainda falta a sombra, sim, falta a sombra. Já está cansada de todo o ritual, cansada da viagem às memórias. Cansada do caminho que tomou para esquecer o caminho que não fez. Perfumou-se e voltou para a cama. Faltava a sombra.
...
terça-feira, 5 de março de 2013
deambulando
...
Fiquei com Março colado à pele.
Foi o degelo que não aconteceu,
o frio que se incrustou no corpo, quebrando ossos,
rasgando carne.
Foi o vazio que veio e ficou,
mora em mim, no meu silêncio, na ausência do sorriso.
Na ausência de um som, onde não há som.
Onde não há eco.
Arranco os pulmões num grito desumano e... não há nem memória.
Só
despindo-me,
Só
rasgando os trapos em que me fiz, arrancando a máscara...
Só
poderei libertar-me deste Inverno?
...
domingo, 24 de fevereiro de 2013
pompa e circunstância
...
perdi a conta aos dias que passaram sobre tantos iguais a este
perdi a conta as vezes que se pôs o Sol, depois do primeiro que já não viste
oiço ainda o som seco dos torrões de terra atirados sobre o teu caixão
imagino-o escutado de dentro
e fecho o livro, marcado com uma linha de coser
a mesma linha com que foste alinhavando a vida
construindo finais possíveis inundados de culpa e de lágrimas
como nos romances
perdi a conta aos finais que escreveste... perdi-os de tal forma que nunca saberei
se esse foi o final que escolheste
...
perdi a conta aos dias que passaram sobre tantos iguais a este
perdi a conta as vezes que se pôs o Sol, depois do primeiro que já não viste
oiço ainda o som seco dos torrões de terra atirados sobre o teu caixão
imagino-o escutado de dentro
e fecho o livro, marcado com uma linha de coser
a mesma linha com que foste alinhavando a vida
construindo finais possíveis inundados de culpa e de lágrimas
como nos romances
perdi a conta aos finais que escreveste... perdi-os de tal forma que nunca saberei
se esse foi o final que escolheste
...
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013
liberdade
...
...
O Tejo vestiu prata, hoje. Cobriu de tule branco o pudor com que assistiu ao beijos que nos arrancámos nas suas margens. Os pilares da ponte suspensos. O Cristo-Rei a pairar, sem chão. Só nós, só os nossos lábios já sabendo a sangue. Afina-se a orquestra, no rio. Saltitam as aves marinhas, em busca de vida. Um barco anuncia-se... ou procura porto? Outro responde...
Esperamos a entrada do maestro, preparamos as mãos para os aplausos. Aos pés temos as correntes que nos prendem ao cais. Não sabemos a que nos seguram, não sabemos se as queremos. Porém, fomos nós que as inventámos. Para nos sentirmos seguros. Não bastam os beijos, não bastam lábios nem as nossas mãos. Um barco anuncia-se e não obtém resposta. O porto estará livre, ou simplesmente o mundo desertou? A âncora está a postos, só não a queremos usar ainda. Viver à deriva... sem amarras.
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013
silêncios
...
pedes-me palavras de amor
nenhuma me pertence
calo-me, muda, sem palavras
e dou-me
no silêncio que se faz no roçar dos corpos
e dás-te
no sémen que se derrama sem saber
pedes-me então mais silêncios,
mais pele na pele,
mais fundo
não sei se dou, não sei se dás
tudo é receber
tudo é dar e sentir
perdemo-nos no balanço
no deve e no haver
nos sentidos sem sentido
e vamos
no nosso grito
a dois
...
pedes-me palavras de amor
nenhuma me pertence
calo-me, muda, sem palavras
e dou-me
no silêncio que se faz no roçar dos corpos
e dás-te
no sémen que se derrama sem saber
pedes-me então mais silêncios,
mais pele na pele,
mais fundo
não sei se dou, não sei se dás
tudo é receber
tudo é dar e sentir
perdemo-nos no balanço
no deve e no haver
nos sentidos sem sentido
e vamos
no nosso grito
a dois
...
sábado, 26 de janeiro de 2013
karma
...
Acordaste em mim
num Inverno que se fez quente
trocamos silêncios
infligimos (o)dores
não ouso dizer o quanto te desejei
não ouso pensar o quanto te amei
fiz de ti a minha pele
rasguei-nos em mil pedaços
amanheci-me nua e fria
de alma despida
não ouso contar quantas lágrimas chorei
não ouso contar quantas vezes gritei
morri e nasci vezes sem conta
inventei-me gaivota
voei embalada no vento
evitei as escarpas
fui abismo
fingi-me liberdade
no meu jeito de não te desaparecer
Acordaste fora de mim
nos Invernos que sobram e já não fazes quentes
não sei o que trocas
não sei os teus silêncios
fiz de ti o meu (o)dor
no meu jeito de não querer e esquecer
fiz-me nó,
na urgência de teSer
...
Acordaste em mim
num Inverno que se fez quente
trocamos silêncios
infligimos (o)dores
não ouso dizer o quanto te desejei
não ouso pensar o quanto te amei
fiz de ti a minha pele
rasguei-nos em mil pedaços
amanheci-me nua e fria
de alma despida
não ouso contar quantas lágrimas chorei
não ouso contar quantas vezes gritei
morri e nasci vezes sem conta
inventei-me gaivota
voei embalada no vento
evitei as escarpas
fui abismo
fingi-me liberdade
no meu jeito de não te desaparecer
Acordaste fora de mim
nos Invernos que sobram e já não fazes quentes
não sei o que trocas
não sei os teus silêncios
fiz de ti o meu (o)dor
no meu jeito de não querer e esquecer
fiz-me nó,
na urgência de teSer
...
segunda-feira, 21 de janeiro de 2013
na boca de cena
...
A sala ficou em silêncio. Baixaram-se as luzes. Subiu-se a cortina.
Firme e decidida, entrou em cena, pisando o palco de madeira esmagando o passado.
Silêncio absoluto.
O foco central acendeu-se sobre si. Ali estava, sem saber o que dizer. Inspirou, sentiu o pó no ar, o cheiro da maquilhagem. Cerrou os lábios, saboreando o batón vermelho. Fechou os olhos, ouviu a sua música e falou.
Falou, falou de tudo e de nada. Riu e chorou. Gritou e sorriu o seu melhor sorriso.
A luz quente envolvia o seu corpo. Finalmente voltara a sentir o corpo, os seus contornos. Foi assim que soube que ainda o tinha, foi assim que sentiu calor naquele Inverno.
Na plateia viu todas as caras que tinham feito parte da sua vida: os pais, os filhos, os amantes, os amigos e as amigas, os vizinhos a quem dizia sempre: - Bom dia!
- Bom dia! - era o seu texto
- Bom dia! - e esperava uma resposta do público, mudo.
- Bom dia! - disse encolhendo os ombros, deixando cair o final da frase, conformada com as ausências.
Agradeceu e saiu a correr.
Não se ouviram as palmas.
A sala estava vazia.
...
A sala ficou em silêncio. Baixaram-se as luzes. Subiu-se a cortina.
Firme e decidida, entrou em cena, pisando o palco de madeira esmagando o passado.
Silêncio absoluto.
O foco central acendeu-se sobre si. Ali estava, sem saber o que dizer. Inspirou, sentiu o pó no ar, o cheiro da maquilhagem. Cerrou os lábios, saboreando o batón vermelho. Fechou os olhos, ouviu a sua música e falou.
Falou, falou de tudo e de nada. Riu e chorou. Gritou e sorriu o seu melhor sorriso.
A luz quente envolvia o seu corpo. Finalmente voltara a sentir o corpo, os seus contornos. Foi assim que soube que ainda o tinha, foi assim que sentiu calor naquele Inverno.
Na plateia viu todas as caras que tinham feito parte da sua vida: os pais, os filhos, os amantes, os amigos e as amigas, os vizinhos a quem dizia sempre: - Bom dia!
- Bom dia! - era o seu texto
- Bom dia! - e esperava uma resposta do público, mudo.
- Bom dia! - disse encolhendo os ombros, deixando cair o final da frase, conformada com as ausências.
Agradeceu e saiu a correr.
Não se ouviram as palmas.
A sala estava vazia.
...
sexta-feira, 11 de janeiro de 2013
inevitabilidade
...
Há meses que usava as mesmas roupas. Desbotadas, no fio, justas ao corpo. A sua cintura reclamava espaço, os pulmões queriam respirar. Os seus, e os que transportava no ventre. Dormitava por vezes, acompanhava os movimentos das nesgas de sol que entravam pela cela. Até chegar a noite e o Sol lhe negar o seu calor. Também o Sol tinha direito a passar umas horas longe dela. Só ela não. Nunca se separava de si mesma. Nem antes de ter aquele coração a pulular dentro de si. De noite não conseguia dormir, sentia-se explodir, o ritmo de dois corações não lhe dava descanso. Acompanhava os ciclos da Lua sem os contar. Tinha a certeza que depois de uma Lua Nova, um Quarto Crescente viria. Era inevitável, por mais que desejasse quebrar aquele ciclo mágico. Com o tempo, o Sol deixou de brilhar entre as grades da sua prisão. Com o tempo, o ciclo da Lua tornou-se infernal. Com o tempo, mais corações bateram dentro de si. A Lua não parava, o tempo também não... e o Sol que não nascia. Exausta, deixou-se tombar. O seu corpo rebolava no chão, numa tentativa torpe de se contorcer. Quebrou finalmente o silêncio, gritou com toda a força que tinha, uivou à Lua, como um animal. Por fim, silêncio. Depois do fim, um princípio, um choro.
Despiu-se, queimou as roupas, passeou nua pela cidade, dançou leve e ágil pelas ruas. Livrou-se de si mesma.
,,,
terça-feira, 8 de janeiro de 2013
enxurrada
...
Lágrimas não são chuva, nunca o foram, falta-lhes a fertilidade, o fim: a terra. Lágrimas desaguam em rios, entre gritos de angústia e dor. Deixam secos os corpos, abrem fendas nos rostos. Levam tudo consigo, até a alma. Deixam para trás os corpos onde já não se rasgam sorrisos, onde se rasga carne e nervo, onde se quebram os ossos. No fim, todos ficamos irremediavelmente sós, chafurdando na mesma lama, na esperança de nova enxurrada.
...
quarta-feira, 2 de janeiro de 2013
trapo velho
...
sobes o fecho do meu vestido, num gesto seco e sem passado. Ias embora, mas voltas e olhas mais uma vez a minha imagem no espelho, vestida por ti.
seguras-me os ombros, o teu silêncio impede-me de partir.
os teus olhos nunca olharam os meus, apenas a sua imagem reflectida no espelho, como agora, vestida por ti.
arranco o fecho do vestido e rasgando-o, faço-o em trapos. Fica o espelho, vazio, despido de mim, vazio de ti.
...
sobes o fecho do meu vestido, num gesto seco e sem passado. Ias embora, mas voltas e olhas mais uma vez a minha imagem no espelho, vestida por ti.
seguras-me os ombros, o teu silêncio impede-me de partir.
os teus olhos nunca olharam os meus, apenas a sua imagem reflectida no espelho, como agora, vestida por ti.
arranco o fecho do vestido e rasgando-o, faço-o em trapos. Fica o espelho, vazio, despido de mim, vazio de ti.
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