domingo, 31 de março de 2013

Pesah

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Há manhãs que são de Carnaval
são manhãs tardias e escuras
mascaradas de um novo dia
silêncios mascarados de gargalhada
o som de talheres de prata
os cheiros de uma cozinha ausente
vinho brilhando nos copos de falso cristal
de falso é ali o mais real

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domingo, 24 de março de 2013

num qualquer pontão


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cobre-nos a velha manta
espessa
negra e vermelha
a mesma que abafa o universo
em horas de tormenta

esquecemos as cores e o ar que bebemos
queimamos por dentro
para nos apagarmos na onda

incendiamos caminhos
abrindo a pele
somos nós, mar adentro

navegando
na velha manta
a mesma onde guardamos os odores
e os sabores

esquecidos no abrigo

das horas ébrias

de desejo

e de sexo
...

quinta-feira, 21 de março de 2013

a ave

...

lívida, a mulher
não vive
respira
e não ama

foge-lhe o sangue
da ferida aberta

paira, a Ave
sedenta
voa em círculos
alimenta-se de silêncio

rasga o peito
a mulher
oferece-se assim
inteira
na ânsia de acabar
o tormento

sacia-se a Ave
grasnando ao vento:

Foi mais uma que cedeu!

e não morreu

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sábado, 9 de março de 2013

psyché

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Naquele dia saiu da cama. Sentou-se em frente ao espelho, muito direita, branca e frágil, como a bailarina de loiça que rodopiava ao abrir a caixa de música. Fingiu lavar o rosto. Espalhou a base.  Às rugas que ladeavam os olhos, juntou mais dois traços, estes pintados por si, a negro. Estes traços sabia-os ela. Entre cada gesto, uma paragem, um olhar no olhar reflectido. Uma interrogação. Como teria chegado ali? Os lábios. Agora contornava os lábios com lápis vermelho. Dessa forma encontrava a linha que deixa de ser rosto e passa a ser lábio, passa a ser boca. O bico do lápis levava a pele. Entreabertos, os lábios, recordavam o tempo dos beijos, da entrega, da dúvida que antecede o toque das bocas. Fechados os olhos, o lápis em suspenso. Uma pequena viagem à memória de ser mulher, à memória de toques de veludo, nos lábios, no rosto, no pescoço. Aqui arrepia-se, arrepia-se o corpo, de prazer, arrepia-se também o caminho para os seios. Ajeita-os no velho soutien branco de bordado inglês. Abre os olhos, vê-se de novo. Observa a maquilhagem. Falta a sombra, diz para si mesma. Em movimentos firmes, espalha o baton sobre os lábios. Ressuscitou assim a boca. Inicia o movimento que a levará a um sorriso. Falta a sombra, é verdade, falta a sombra... Tem o rímel nas mãos. Afaga as pestanas, parecem quase sorrir também. Um último retoque, o pó, que lhe retira qualquer ameaça de brilho que o rosto se lembrasse de inventar. Ainda falta a sombra, sim, falta a sombra. Já está cansada de todo o ritual, cansada da viagem às memórias. Cansada do caminho que tomou para esquecer o caminho que não fez. Perfumou-se e voltou para a cama. Faltava a sombra.

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terça-feira, 5 de março de 2013

deambulando

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Fiquei com Março colado à pele. 

Foi o degelo que não aconteceu, 
o frio que se incrustou no corpo, quebrando ossos, 
rasgando carne. 

Foi o vazio que veio e ficou, 
mora em mim, no meu silêncio, na ausência do sorriso. 

Na ausência de um som, onde não há som. 

Onde não há eco. 

Arranco os pulmões num grito desumano e... não há nem memória. 

Só 
despindo-me, 
rasgando os trapos em que me fiz, arrancando a máscara... 

Só 

poderei libertar-me deste Inverno?

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