sexta-feira, 26 de abril de 2013

(des)enlace

...

Sopras
apagando a vela
e viras o corpo para o outro lado

Bailas no ar
de cheiro a cera queimada

Olhas-me
                                        e não me vês

na cega embriaguez de um fogo fátuo

Fazes-me cinza
nas labaredas da chama de fénix que foste

                                             e já não és

Adormeces
na ausência, na ausência de cor e luz

na mudez do suor libertado pela luta dos corpos


                                             e já não soas

aos sonhos de outro lugar
daquele lugar onde sempre nos desencontrámos

Só nos restam os lençóis rasgados
e o odor esquecido a sexo e a pavio

                                             e já não somos

o tal amor que não se fez e nunca aconteceu

Neste caminho que não é teu

Nem meu

...

sábado, 20 de abril de 2013

enjaulada

...

de ser mulher sobro-me
e não me encontro

perco-me nas ausências
no turbilhão da cidade

não é ar o que respiro
nem "Bons dias!" o que desejo

é o grito amordaçado
é a solidão que bebo

sem vinho, sem copo

de ser mulher desconcerto-me
e nem sei se amo
se fujo

são os olhos que não me vêm,
são as mãos que não me tocam,
nesta pele que visto

à deriva
nos rios salgados
de lágrimas choradas

...

quarta-feira, 17 de abril de 2013

voando

...

A pequena ave acordou com a voz do vento.
Segredava-lhe:
- Voa!
Deu umas tantas piruetas no ar.
Depois, o vento uivou:
- Mais longe!
Engoliu em seco, engoliu o coração que se preparava para saltar.
Atreveu-se a olhar mais longe.
- Mais longe!
E viu rochedos imponentes.
- Mais longe!
E viu mar.
- Mais longe.
E viu céu.
A pequena ave fechou os olhos e sem medo voou.
Voou mais longe!
Rumo ao horizonte.
Naquela linha não sabia o que ia encontrar,
se céu, se mar.
O vento levava-a ao som da palavra:
- Voa!
Para trás ficou o ninho,
a pequena aldeia de casas brancas.
Suspirou sem saudade.
Mergulhou no horizonte.
O céu engoliu o mar,
E o mar engoliu a terra,
Apagou-a da memória dos homens,
das casas, dos quintais,
dos risos distantes.

Agora só se lembra das janelas
que deixou
abertas.

...

quarta-feira, 3 de abril de 2013

espelho meu

...

Ajeitou o cabelo, a gola da camisa, os punhos do casaco.
Olhou-se como se fosse olhada
com um sinal de aprovação, deu um passo para o lado, afastando-se,
inclinou-se para trás, certificando-se de que a imagem também se afastava.
Não podia esquecer-se dela, depois de tanto trabalho a aprimorar-se.

Enfeitada, foi para a rua. Procurava dois olhos,
dois olhos que a vissem, duas mãos que a afagassem.
Mais nada.

Caminhou durante horas, até chegar ao lago.
Olhou o fundo do lago como se ele a olhasse.
Acenou, dando um passo em frente, molhando os folhos da saia.
Inclinou-se sobre a água, molhando as mãos, mergulhando os punhos.
Procurava a imagem, a que julgava ter trazido consigo e ficou para trás.
Não a reconhecia, depois de tanto esforço para mudar,
para se afogar.

Flutuava sob o céu, sobre a água. Procurava a imagem
a imagem que a abandonara, numa bofetada imaginada.
Mais nada.
...