sábado, 29 de novembro de 2014

em vão

...

finalmente fugi
corri dia e noite
vestida de sombra
escondida
tão escondida de mim
do mundo

só uma lágrima se recusou secar
brilha ainda
no fundo do meu olhar
dá-me de beber 
e à dor

seca-me a pele
salga-me o grito 
estrangula esta angústia contida

como que tem garras
como que tem uma força imensa
um olhar raiado de sangue

bebe o meu último fôlego
despedaça - me os sonhos
até mais nada sobrar

os estilhaços são projectados
sem alvo
sem destino concreto

quem sabe,
para a estratosfera

quem sabe, 
para lado nenhum

de mim
só 
o sal da lágrima

e os sonhos vazios

...

terça-feira, 23 de setembro de 2014

nu é

...

Uma madrugada, ainda nua, abri a janela e libertei O corvo.
Vi-o afastar-se no horizonte, até não ser mais que um ponto negro, até ser nuvem, sombra dos dias.
Não voltou para mim.
Vários o têm visto, dizem que continua negro, as suas penas brilhando ao sol, grasnando altivo: - Não preciso mais de ti. Não precisas mais de mim. Não tenho que voltar. Sou livre!
Sem esperar pelo seu regresso impossível, sem uma lágrima, vesti-me no meu vestido branco, saí.
E também não voltei. Não cantei, não gritei. Vestida, sou nua. Em silêncio. Sou livre!

...

sábado, 16 de agosto de 2014

...
Não sabia de que se vestir
talvez de tristeza
com um toque de seda
não daquela seda lisa, domada
talvez de seda selvagem
vincos em desalinho
cantando a cada movimento do corpo
da que se faz percussão em noite de dança
perfumou-se
de solidão
o vestido sobre a cama, sem corpo
puxou os cabelos
talvez prendê-los
enlaçados em si mesmos
sem ganchos, sem brilhantes,
ou talvez soltos
selvagens como a seda
em desalinho a condizer consigo mesma
o vestido observa-a, sobre a cama, sem corpo
o espelho captura-a, atento, impávido
o seu corpo espera ordens, imóvel
podia desfazer-se naquele preciso momento
evaporar-se
deixaria no quarto um pó brilhante a pairar,
um pó de estrelas
ou simplesmente nada
nunca ninguém saberia
olhou-se
nua, prisioneira de um espelho baço
podia ficar ali para sempre
aguardar cada ruga, o apodrecer da própria carne
viva ou não
não importava
o vestido observava-a, sobre a cama, sem corpo
lançou-se sobre ele
abraçando-o contra si
saiu do quarto a correr, galgou a porta da rua,
percorreu as ruas da cidade
assim...
nua, como quem voa,
abraçada ao seu vestido de seda
selvagem
...

https://www.youtube.com/watch?v=HsHKWGHkH0M

domingo, 27 de julho de 2014

crónica da descartabilidade heterossexual

...

Engoli um analgésico, peguei na última nota de vinte euros e pintei-me de modo a tapar todo o esforço que estava a fazer. Se uma amiga faz anos e me convida, é importante para mim não lhe faltar. Eu ficaria triste se me faltassem sem um bom motivo, principalmente se ninguém aparecesse como eu suspeitava que lhe iria acontecer. 
Amigos são assim, às vezes não conseguimos suportá-los, não temos pedalada para as mesmas coisas… às vezes magoam-nos. Mais tarde percebemos que provavelmente não estamos isentos de culpa e lembramo-nos da importância da amizade, da gestão da imperfeição de todos nós, procuramos um equilíbrio, mesmo que frágil.
Conversámos, conversámos sobre temas inócuos, até que, inevitavelmente chegámos ao tema “amizade”. É aqui que quero chegar. E arrependo-me, arrependo-me de ter ouvido a opinião dessa amiga, que me diz que para ela as amizades passam, são temporárias, puf… acabam e não quer mais saber disso, os amigos vão e vêm…

Que homens me digam que não querem nada mais que uma curta aventura, ou que o façam entender, que depois cada um vai à sua vida… a isso não só já me habituei como me tornei adepta. Mas com uma mulher, uma amiga, ou que julgava eu ser amiga, pergunto-me, qual é o objectivo? O que estou ali a fazer? É que nem sequer uma contrapartida sexual está em questão…

...

Da existência exclusiva em horário de expediente


já disse e volto a dizer
quero morrer num sábado
assim, sem incomodar
se morrer num sábado
ninguém dará pela minha falta
evitam-se as homenagens fúnebres
e a compra apressada das flores
que nunca antes recebi
só a partir de segunda-feira
vão dar pela minha falta
não vou atender o telefone
não vou responder ao email
não vou ver a conta bancária
nem fazer transferências
talvez nem pague a conta da luz
e terão que a vir cortar
e a renda
a renda ficará por pagar,
a roupa por estender,
não lembrarei os outros
dos assuntos que devem ser eles a lembrar
e não vou actualizar o status do meu facebook
porque não vou cá estar para o ler
e confirmar que minutos antes
estava suficientemente viva

para o escrever

domingo, 20 de julho de 2014

defunctorium


...

Estou de luto

De luto pela humanidade

Envergonha-me tanto sangue derramado
Tanta criança assassinada
Vidas sem amanhã
Pessoas reduzidas a cinzas
Tanto ego exaltado
Tanto luxo para tão poucos

E o poder
O poder nas mãos de falsos deuses

Empunhando os seus talheres de prata
Degustando em copos de cristal
As lágrimas dos que ficam e esperam

A sua hora

…Talvez depois da sobremesa

Estou de luto
De luto por mim, por nós todos
Por pactuarmos em  silêncio, obtusos e impotentes
Com o dizimar de todo um futuro

... Enquanto não mudamos de canal

...

segunda-feira, 12 de maio de 2014

"celle qui n'était plus"

...

... e os dias chorados sem lágrimas derramadas
soando a vazio, a sem futuro, a grito sem eco, lembras-te?
E o punhal
aquele punhal que deixaste cravado na minha alma?
Continua aqui, estancando o sangue...
à espera do dia, o dia em que disseste que voltavas...
eu ia contigo, mundo fora, sem bagagem, sem olhar para trás.
Não me arranquem o punhal,
no dia em que perder esta dor na alma, perco as memórias de ti,
perco a fantasia de um dia receber eu as flores,
perco-me

de quem fui

e já não sou

...

quinta-feira, 17 de abril de 2014

llorando

...

há silêncios que nos matam, soam a grito

                                          secam-nos por dentro

à sua volta não se nasce, não se morre

         abafam o remexer da gravilha seca, o canto de um pássaro

há silêncios que rasgam a terra e nos agarram

                                                             a nós mesmos
                                                     e
                                                                                         aos outros

fazendo de todos bandeira erguida ao vento

      em memória de quantos lutaram

                                                                  sem futuro

... se não for a tua voz, se não forem as tuas mãos


                                                                                 a quebrá-los

 ...


sábado, 22 de março de 2014

fuga de mim menor

...
teci um manto de escuridão

na fúria dos nós quebrei os dedos

vi-os em ferida
sem função nas  mãos inúteis
fracos
para um abraço
mortos
para uma carícia

cubro-me com o manto escuro
tecido pelo meu silêncio,

e calo-me
Calo-me sempre!

não vá o meu grito despertar as feras
não vão as feras destruir o meu mundo 

aquele de que me escondo
E depois,

rodeada de destroços,
de silêncio

de que me esconderia eu?

abafo o grito na escuridão do manto
E fujo!

de mim
...

domingo, 16 de março de 2014

monumento ao poeta desconhecido








A melhor coisa que me aconteceu na vida foi ter aprendido a ler e a escrever. Foi a primeira vez em que me senti realmente feliz, capaz de aceder a um mundo que me rodeava mas que eu até aí não decifrava. Comecei a ler tudo, uma viagem de Lisboa ao Alentejo passou a ser empolgante, podia ler todos os cartazes e avisos com que me cruzava durante quilómetros. A maldição começou quando escrevi o primeiro poema… não sei exactamente quando, andava na escola primária. Escrevi sobre a violência que se vivia em Beirute, sobre a guerra…foi o início da maldição. Pouco tempo depois e alguns poemas depois estava a professora a perguntar-me se eu sofria de algum atraso, a minha mãe a evitar que eu mergulhasse tão profundamente nos livros. Já adolescente, lembro-me de ela ter feito desaparecer “O Elogio da Loucura” de Erasmo de Roterdão, assustada com o título.
Contudo, escrevi sempre, rasgando de seguida. Escrevia a amarelo sobre papel branco para que não fosse fácil ler. Periodicamente relia e rasgava tudo. Mantive esse hábito até que descobri os blogs. A medo criei um blog, mantive um perfil discreto e dei-lhe um nome que nem eu sei escrever (só lá consigo entrar pelos favoritos), escrevia com letra muito pequena, e evitava poesia. Foi mais um passo na minha maldição, a pouco e pouco atrevi-me e comecei a publicar poesia.
Por vezes assola-me a vontade de rasgar, neste caso, de o apagar, mas sei que tecnicamente é mais complicado e não substitui aquele som de papel rasgado que tão bem define a ira.
Fui crescendo e ganhei alguma confiança em mim. Consegui manter em arquivo e salvaguardados de mim mesma alguns textos que não publiquei no blog. Pensei divulgar, publicar em livro, concorrer a concursos de literatura e poesia.
O primeiro e único contacto que fiz no sentido de publicar aceitou fazê-lo. O primeiro poema “sob encomenda” foi uma trapalhada, foi quando vi que esse mundo não é para mim.
 As três peças de teatro infantil que escrevi foram representadas pelo grupo de Teatro que me acolhe e não me tem deixado desistir. Acabei de escrever a primeira peça de teatro para “gente crescida”, quase obrigada por eles.
Já raramente escrevo poesia. Não avanço com a publicação dos textos que tenho escondidos, por vergonha, por medo de estar a provar ao mundo que realmente sofro de algum atraso, como previu a minha professora da quarta classe.
Há poucos meses frequentei workshops de escrita, criativa e para palco. Acho que foi mais um tratamento eficaz para estas manias de poesia.
Sinto-me como se desde cedo tivesse aprendido a nadar “à cão” mas a partir do momento em que me obrigaram a nadar com técnica, um braço de cada vez, agora só pernas, agora só braços, tivesse começado a afogar-me. Neste momento não nado “à cão” nem sou o Phelps e Phelps só há um.
Não sabia que tantas pessoas odeiam poesia. Não sabia que ficava tão bem dizê-lo. Não tinha noção da importância de se estar “no meio certo”… mas isso é importante, até mesmo para o blog que está ali mesmo à mão.
Se eu publicar no Facebook que o meu gato espatifou a árvore de Natal e vomitou sobre o Menino Jesus, tenho muito mais reacções do que nos links do blog que partilho.
Dado isto, pondero remover o blog e dedicar-me ao vómito de gato.

domingo, 2 de março de 2014

sem flores

...

a manhã encontrou-me

perdida de mim

longe dos outros

desfeita


não tentem trazer-me de volta

não me procurem nos despojos da noite

não me construam um novo dia

pois se o outro se acabou

sem aplausos


arrancando-me em pedaços 


e nem uma flor foi deixada no meu lugar 

vazio

...

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

de tanto ouvir falar de amar

...

amo durante o tempo de um olhar

um minuto uma noite uma vida

mas amo sempre

porque o amor é sempre

é o inicio o meio e o fim

é não possuir nada

não esperar nada

e a brincar celebrar

a vida

a liberdade

nos corpos por semear

...







quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

vazios

...

por vezes perco um sorriso

e eu
sem saber para onde foi, sem saber se o voltarei a encontrar

cada vez mais                      perco sorrisos
cada vez mais                               ficam espaços
                          vazios

desde quando perco o rasto aos sorrisos?
não sei ao certo...

sempre que perco um sorriso
um                        vazio
             fica
um arranhão
                      sangra
como se uma garra tentasse arrancar de mim
          um pedaço de carne


e eu
fugindo de mim
devolvida ao silêncio
amparada nos braços vazios de uma queda eternamente adiada
fico

fico só
fica             o             vazio
um novo sorriso volta


o perdido não volta
nunca mais!

...

domingo, 9 de fevereiro de 2014

cupido em greve

...

não me peçam textos de amor

não me peçam palavras

esgotaram-se

acabaram no fim de mim

nem flores

não me ofereçam flores

passou-se o tempo

esgotou-se o prazo

e o encanto

não me peçam textos de amor

deixem-me



no meu pranto

...

domingo, 5 de janeiro de 2014

o bloqueio

...

As últimas palavras foram cuspidas, sem sentido

Apagaram-se as luzes, conforme o guião.

As palmas ecoaram na sala, os aplausos fizeram-se de pé.

Sem saber qual a deixa final, o poeta ficou sentado, atropelado pelos que saíam.

Fazem-lhe sinal para sair.

- Não ouvi a última deixa...
- Amigo, não interessa. saia da sala
- Só se me disser qual foi a última deixa.
- Não me empate! Olhe que chamo a segurança.

Abandonou a sala, vazio de um final.

De longe gritaram-lhe: - Cuidado, está a resvalar para a poesia!

- Eu?

- Não, a deixa, a última deixa.

...