sábado, 9 de março de 2013

psyché

...

Naquele dia saiu da cama. Sentou-se em frente ao espelho, muito direita, branca e frágil, como a bailarina de loiça que rodopiava ao abrir a caixa de música. Fingiu lavar o rosto. Espalhou a base.  Às rugas que ladeavam os olhos, juntou mais dois traços, estes pintados por si, a negro. Estes traços sabia-os ela. Entre cada gesto, uma paragem, um olhar no olhar reflectido. Uma interrogação. Como teria chegado ali? Os lábios. Agora contornava os lábios com lápis vermelho. Dessa forma encontrava a linha que deixa de ser rosto e passa a ser lábio, passa a ser boca. O bico do lápis levava a pele. Entreabertos, os lábios, recordavam o tempo dos beijos, da entrega, da dúvida que antecede o toque das bocas. Fechados os olhos, o lápis em suspenso. Uma pequena viagem à memória de ser mulher, à memória de toques de veludo, nos lábios, no rosto, no pescoço. Aqui arrepia-se, arrepia-se o corpo, de prazer, arrepia-se também o caminho para os seios. Ajeita-os no velho soutien branco de bordado inglês. Abre os olhos, vê-se de novo. Observa a maquilhagem. Falta a sombra, diz para si mesma. Em movimentos firmes, espalha o baton sobre os lábios. Ressuscitou assim a boca. Inicia o movimento que a levará a um sorriso. Falta a sombra, é verdade, falta a sombra... Tem o rímel nas mãos. Afaga as pestanas, parecem quase sorrir também. Um último retoque, o pó, que lhe retira qualquer ameaça de brilho que o rosto se lembrasse de inventar. Ainda falta a sombra, sim, falta a sombra. Já está cansada de todo o ritual, cansada da viagem às memórias. Cansada do caminho que tomou para esquecer o caminho que não fez. Perfumou-se e voltou para a cama. Faltava a sombra.

...

Sem comentários: