domingo, 28 de fevereiro de 2010

I'm your private dancer

Pele de louça dourada, num demi plie eterno, feita de uma só peça, a pequena saia branca em tule, era a bailarina mais rigida no mundo, desprovida de movimento. Voltas e reviravoltas naquelas mãos de menina eram a sua coreografia. A sua imagem reflectia - se no verde do olhar da menina, levantava -se o pano, o pequeno coração dava as pancadas que a anunciavam, a bailarina ganhava vida à boca de cena. O brilho das estrelas iluminava o seu rosto de louça, sorria, dançava, viajava no vento para além do palco que era a imaginação de criança. A menina cresceu, partiu-se em cacos a bailarina, a saia de tule rasgou-se, desfez-se em fios. A mulher recolhe os pedaços, passa a vida a moldá-los, a procurar a forma, o jeito do demi plie. Dos fios fez um novelo, eternamente tece de novo a pequena saia. Onde pára agora a coreografia de ternura e magia? Faz-se num dedilhar de poeta...

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Sem palavras, vazia O silêncio é tudo e tudo é solidão
Guardo os segredos, grito mudo dos meus medos
e adormeço assim, sem tempo nem perdão

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Babushka

Hoje, abutres pairam sobre o teu corpo. Se o tempo se repetisse morrerias amanhã. Lembras - te de me dizer que te matavas? Que até já tinhas escrito uma carta? Amanhã morreste e eu estou triste como nunca. O que pretendes fazer agora, minha mãe? Até hoje não encontrei a carta, mas a maldição ficou impressa no embrião...

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Um baile de máscaras

Tenho medo. Grito por ajuda sem emitir um som, um sinal. Sei que não há quem me proteja da fera, da sua beleza e força, do seu instinto selvagem. Quero desaparecer daquela sala inundada de música, esconder-me onde o céu não me esmague ao cair. Luto contra o cansaço dos desencontros da vida, escada rolante em sentido descendente que me cabe subir ao encontro - do quê?

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Dia de S. Consumim

Ficava-te bem uma rosa vermelha, não hoje... num dia qualquer. Uma rosa das que não se fazem nas lojas, vermelha do sangue derramado no parto. Uma rosa ainda na memória do orvalho, lágrima das noites febris e virais. Uma rosa lembrada do odor, perfume libertado no amor. Ficava - te bem uma rosa vermelha, feita de pétalas de veludo e folhas verdes... e espinhos.
...
Gosto de ver, no dia dos namorados, os mais velhos a comprarem flores. Não têm os olhos arregalados de consumismo, nao oferecem telémoveis nem perfumes caros. Oferecem flores com a calma e sabedoria que só o tempo ensina. Imagino a mulher que vai receber esse ramo colorido, depois de uma vida longa, dedicada aos filhos, à familia, uma vida de trabalhos e de espinhos. O dia dos namorados devia ser comemorado depois dos sessenta anos, na condição de já se ter mais do que vinte de vida em comum... quem sou eu para saber o que é namorar?

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Morte anunciada

...

chegou o tempo

e a espuma das ondas

passeia nas tuas mãos

Desfazem-se ao toque

são nada

são sal colado à tua pele 
desfeito na água doce do teu banho

fita de cinema mudo
cenas que não filmaste
e desejos vãos

Apaga - o

Apaga o tempo, agora que é chama

Vela cedendo ao vento
queimando a carne e a pele

chegou o tempo 
voltamos a ser papel de rebuçado, transparente e lambuzado

... poema mediocre e inacabado

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Futurologia

Escapa-se-me a vida como a areia, por entre os dedos. A luz começa a extinguir-se, é a sua ausência que pinta as ruas por onde ando. Já todos recolheram ao calor das casas, ao brilho das vozes que os aguardam. Sei que este caminho me leva ao silêncio, sei que um dia perderei o rosto neste jogo perigoso em que o tempo é senhor. Nada me espera, ninguém me anseia. Procuro-me no espelho partido, toco o fio de sangue ainda quente que escorrega pela minha imagem. É o mais próximo de um toque humano que poderei sentir.