segunda-feira, 29 de outubro de 2012

muito perto

...

Percorreu todo o cais, perto do rio, sorrindo, ajoelhou. Chegou tão perto do fim do cais quanto lhe foi possível. Esticou-se até tocar com a palma da mão nas águas em movimento. Ficou nessa posição, incomoda, de servidão. As águas iam e vinham. Umas vezes nem lhe tocavam a mão, outras envolviam-na e acariciavam-na, lânguidas e mornas. Manteve a mão firme, na distância que lhe foi humanamente possível manter. Até se sentir cansada. Até se sentir ridícula naquela posição. Humilhada pela indiferença das águas, pelo seu vai-vem constante e indiferente. Sem deixar de sorrir, deixou-se afundar lentamente. Não foram as águas que a levaram.

- E se eu for ao fundo?
- Ninguém te irá buscar!

...

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

paz

...

banhar-me no esquecimento
enrolar-me
na Paz  acomodada dos meus lençóis


embriagar-me de silêncio
coro de ausência a uma só voz

anestesiar-me de ópio
lavando os pedaços de memória cravados na carne

e deixar-me levar na força das ondas

não há sempre
não há voltar

...





terça-feira, 23 de outubro de 2012

serial lover


Viciou-se em morrer de amor
Amava de cada vez como se fosse a última
Chorava nas despedidas breves
Abria o peito à dor
e deixava-se levar...

Amar era tão bom quanto morrer de amor
Urgia alimentar o vício
Quando morrer de amor se tornou insuficiente
Começou a caçar
Fingia que amava até não poder mais
Até não lhe apetecer mais brincar a isso

Não importava quem deixava para trás
desde que o sofrimento tivesse a sua assinatura
deixando tatuado o desencanto e o desamor

Alimentava-se da morte de amor dos outros

...
A escuridão da cidade abriga  um uivo de dor
só percebido por ouvidos desumanos
e desenhado nos sonos inquietos

domingo, 21 de outubro de 2012

porque sim

...


Agarrou-se àquela golfada de ar como se fosse a última. Previsível e irremediavelmente, esgotou-se. Não havia explicação, vieram de todo o mundo médicos e especialistas analisar o caso: vivia sem respirar. Cada noite de sono era velada como se fosse a sua última noite. Despedia-se dos cheiros, dos sons, das cores e dos afectos. Na manhã seguinte um esquadrão de técnicos e especialistas assistia ao despertar. Estavam equipados como todo o tipo de aparelhos para reanimação, caso fosse necessário. Acordava e perguntava, um a um se ainda vivia. Todos lhe respondiam que sim, só assim, a custo, acreditava. Passaram dias, meses, anos. Sempre o despertar era assim. À sua volta estava instalado um centro de operações, foi construído um laboratório. Sempre amanhecia perguntando se vivia, a cada um dos que a observava. Até que uma madrugada, após todos terem respondido afirmativamente, perguntou de novo: - Porquê? - E perguntou um a um. Respondiam em silêncio, um encolher de ombros, um aceno de cabeça. Apercebeu-se da presença de uma criança,  num canto do seu quarto. Fazia um desenho. Fez-lhe a pergunta e ela respondeu prontamente, sem parar de desenhar: - Porque sim! 

...

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Mar adentro






Mar adentro,
mar adentro.
Y en la ingravidez del fondo
donde se cumplen los sueños
se juntan dos voluntades
para cumplir un deseo.
Un beso enciende la vida
con un relámpago y un trueno
y en una metamorfosis
mi cuerpo no es ya mi cuerpo,
es como penetrar al centro del universo.
El abrazo más pueril
y el más puro de los besos
hasta vernos reducidos
en un único deseo.
Tu mirada y mi mirada
como un eco repitiendo, sin palabras
‘más adentro’, ‘más adentro’
hasta el más allá del todo
por la sangre y por los huesos.
Pero me despierto siempre
y siempre quiero estar muerto,
para seguir con mi boca
enredada en tus cabellos.


Ramon Sampedro






sábado, 13 de outubro de 2012

um dia

...

quando arrombarem esta porta
e me encontrarem morta
não me tragam rosas nem lirios


tragam-me o vosso calor
aquele que de mim fará cinzas

queimem tudo o que alguma vez foi meu

e cantem
bebam, festejem

dancem à noite com a minha sombra despida
aquela dança que nunca dancei em vida

no final,
fechem a porta e não olhem para trás

assim me amarão
assim partirei em paz

...





quinta-feira, 11 de outubro de 2012

onde me deslaço



...

a minha vida é um fio frágil

seguro-a com ambas as mãos

torno-a mais curta a cada nó

próxima do fim da linha

fico mais forte e só

numa memória só minha

...

terça-feira, 9 de outubro de 2012

dançando à chuva

...

- Estás triste?
- Um bocadinho...
- Anda, vamos lá para fora brincar!
- Não vês que chove?
- Não vês que também está Sol?
- E depois?
- Quando chove e faz Sol, as bruxas festejam e comem pão mole!
- E o vento não nos desfaz?
- Aproveitamos a sua boleia, ele leva-nos a comer um gelado.
- Então vamos, talvez no caminho apareça um arco-iris.
- Vamos lá!
- E agora, porque ris?
- Porque tens chantilly na ponta do nariz!

...

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

respirar mar

...

eis-me, o abismo que te abraçará
nas águas revoltas da busca de tudo

eis-me, de mãos vazias em oferenda
de falsos diamantes e sonhos acabados

pouco tenho para dar
porque nada possuo

não mais que um oceano de amar
não mais que a vida e o dom de te respirar

...



segunda-feira, 1 de outubro de 2012

limbo

...

... a tinta vermelha rasga o papel em que te escrevo como se rasgasse a pele. Não escrevo palavras, grito por socorro. Perco o sangue e a razão, nestas veias abertas na ausência de um abraço. Cravo as unhas nas paredes em busca do caminho. Para trás há engano, para a frente não há caminho. Fico e espero. Fico sem saber se estou viva ou morta. Fico, apenas. E espero o dia em que te deixes encontrar.

...