segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

voltar

...

posso
ver contigo os filmes a preto e branco

sorrir com o Astaire ou com o Gene Kelly

emocionar-me com a aventuras do Errol Flynn

e concordar que o melhor Tarzan é o Weissemuller

posso
ouvir as tuas histórias

acreditar que as tropelias de Charlot são as tuas

acordar com um chocolate sobre a almofada

e rir por a tua açorda cheirar a caracóis

posso
lembrar-me de um homem bom

de um lutador

um menino voador nos seus sonhos

do cheiro a tinta e a aguarrás nas tuas mãos

as mãos do "homem mais rico do mundo"

e manter

viva a lembrança

de ti

...



quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

alerta



... baixando-se apanhou a beata ainda acesa do chão. Ergueu-se lentamente, segurando-a entre os dedos, protegendo a fraca chama do vento e da chuva. Alerta laranja. A cidade estava em alerta laranja. A chama da sua beata, laranja. Fechando os olhos levou-a aos lábios. Apertou-a, respirou-a como se fosse o seu último trago de ar. O fumo invadiu-lhe o peito, queimando tudo à sua passagem. Suspendeu a respiração, deixou turvar-se o cérebro, as lembranças, o futuro vazio. Hirto, parecia deixar-se tombar. A parede amparou-o. Os olhos continuavam fechados. As rugas desenhavam um falso sorriso. Viu-se numa sala de jantar, viu-se no cristal dos copos meios de vinho, meios de nada. Viu-se na prata dos talheres e  no tilintar das loiças. Sacudiu-se no linho branco dos guardanapos sobre o colo. Ao seu lado, de pé e pela direita, serviam-no, de libré. Cada colherada de sopa caia no vazio. No vazio de um prato, no vazio de uma mesa, no vazio de si. O vinho entornou-se. Manchou de tinto a toalha branca, as calças negras, os punhos bordados. Deixou-se escorregar pela parede. Agachou-se no chão coberto de folhas molhadas. O vento arrancou-lhe a beata dos dedos cansados. Ainda acesa tombou sobre o lixo da véspera. Laços dourados, caixas e papéis coloridos. Vermelho. A cidade passou a alerta vermelho.

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domingo, 15 de dezembro de 2013

re de coração

...

Casaco comprido, cinzento de olhar, coçado e gasto a condizer com o rosto, Belinda senta-se no seu banco do jardim de todos. Arruma à sua volta os sacos, as mantas e os trapos. Se não chover, será ali que irá pernoitar.

A noite espreita. O burburinho do trânsito desvanece-se. Os transeuntes aceleram o passo, fogem do sol - pôr, como se ser surpreendido pela noite, ainda fora de casa fosse uma praga, uma maldição. Há que fugir e depressa, não vá a escuridão abater-se sobre os sacos de compras e os seus laços brilhantes, não vá o brilho caro esmorecer.

Belinda ajeita-se. Nidifica naquele banco. Torna-o a sua casa. Observa as árvores, seu tecto.

Devia mandar pintá-las de outra cor, já me cansa este verde. Ou podia pendurar-lhes umas estrelas.

Passa um homem, baixo, agasalhado até ao nariz e apressado, muito apressado. As mãos nos bolsos empurravam o sobretudo à sua frente.

Amigo, assim o sobretudo chega a casa primeiro que tu!

Belinda julgou ter pensado, mas não pensou, disse. Apesar de não se ter ouvido a si mesma. Pois se o homem lhe respondeu, foi porque o pensamento se fez voz, sem a sua autorização.

Amigo?! Felizmente nunca o fomos. 

Resmungou, prosseguindo a sua corrida para fora da noite, à velocidade da resposta.

Nunca se sabe, amigo. Sabes lá se não fomos amigos em tempos! Por acaso não te lembras de mim? Ora olha bem para mim e responde.

O homem pára, olha o enorme trapo cinza.

Não me parece. Não tenho amigos que tenham acabado assim.

Assim como?

Assim, nessa miséria! 

A própria articulação da palavra custou-lhe, pareceu cuspir o som.

Achas que me acabo na minha miséria? Não sejas melodramático, amigo! Não é nos meus pertences nem na sua ausência que me acabo. Anda cá. Senta-te aqui ao pé de mim.

O pequeno homem olha em volta, não vá ser visto por alguém. Engole em seco, respira fundo, fecha os olhos e abre-os de novo, atreve-se. Senta-se ao lado de Belinda. por precaução não a olha, finge-se indivíduo, ali sentado, olhar fixo, em frente, para coisa nenhuma.

Belinda olha-o, divertida com a atrapalhação, feliz por uma companhia ali, a menos de meio metro de si mesma.

Amigo, olha para cima. Olha estas árvores. Tens árvores? Eu tenho, são o meu tecto. Até estou a pensar fazer umas melhorias... redecorar a minha casa. Ajuda-me. Fecha os olhos e imagina estrelas, sim, como aquelas lá longe, só que estas vão estar aqui, suspensas nos ramos, inventadas por nós dois. Por cima de nós. Consegues sentir o seu calor?

Ele encolhe-se, esperara um discurso absurdo, mas não deste género. Deixa-se levar, imagina-se banhado pelo brilho das estrelas acabadas de acender por aquela mulher estranha. Mantém os olhos fechados, parece até sorrir.

Belinda observa-o, enternecida.

Agora abre os olhos e olha para os meus. Isso... olha bem. Diz-me se vês aqui alguma miséria.

Embargado, acena que não. Mergulha no olhar de Belinda e deixa-se levar. Flutua nas ondas daquele mar de Inverno, rumo a um mundo desconhecido.

Belinda acorda-o do torpor e pede uma resposta.

Concordas com o que te disse?

Não tenho outro remédio... 

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