quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

...

és sangue a jorrar nas veias
abres caminho na carne.
Perdes-te nas pequenas teias
sem destino,
e esbarras na cauterização da ferida.
Olhas para ti, nua.
A cicatriz roxa atravessa-te a mama.
O vazio enche-te o olhar.
Sabes que se acabou o caminho.
Viras a página.
Já de nada precisas.

está o ciclo completo
posso agora partir
nada fica por acontecer

...

sábado, 29 de novembro de 2014

em vão

...

finalmente fugi
corri dia e noite
vestida de sombra
escondida
tão escondida de mim
do mundo

só uma lágrima se recusou secar
brilha ainda
no fundo do meu olhar
dá-me de beber 
e à dor

seca-me a pele
salga-me o grito 
estrangula esta angústia contida

como que tem garras
como que tem uma força imensa
um olhar raiado de sangue

bebe o meu último fôlego
despedaça - me os sonhos
até mais nada sobrar

os estilhaços são projectados
sem alvo
sem destino concreto

quem sabe,
para a estratosfera

quem sabe, 
para lado nenhum

de mim
só 
o sal da lágrima

e os sonhos vazios

...

terça-feira, 23 de setembro de 2014

nu é

...

Uma madrugada, ainda nua, abri a janela e libertei O corvo.
Vi-o afastar-se no horizonte, até não ser mais que um ponto negro, até ser nuvem, sombra dos dias.
Não voltou para mim.
Vários o têm visto, dizem que continua negro, as suas penas brilhando ao sol, grasnando altivo: - Não preciso mais de ti. Não precisas mais de mim. Não tenho que voltar. Sou livre!
Sem esperar pelo seu regresso impossível, sem uma lágrima, vesti-me no meu vestido branco, saí.
E também não voltei. Não cantei, não gritei. Vestida, sou nua. Em silêncio. Sou livre!

...

sábado, 16 de agosto de 2014

...
Não sabia de que se vestir
talvez de tristeza
com um toque de seda
não daquela seda lisa, domada
talvez de seda selvagem
vincos em desalinho
cantando a cada movimento do corpo
da que se faz percussão em noite de dança
perfumou-se
de solidão
o vestido sobre a cama, sem corpo
puxou os cabelos
talvez prendê-los
enlaçados em si mesmos
sem ganchos, sem brilhantes,
ou talvez soltos
selvagens como a seda
em desalinho a condizer consigo mesma
o vestido observa-a, sobre a cama, sem corpo
o espelho captura-a, atento, impávido
o seu corpo espera ordens, imóvel
podia desfazer-se naquele preciso momento
evaporar-se
deixaria no quarto um pó brilhante a pairar,
um pó de estrelas
ou simplesmente nada
nunca ninguém saberia
olhou-se
nua, prisioneira de um espelho baço
podia ficar ali para sempre
aguardar cada ruga, o apodrecer da própria carne
viva ou não
não importava
o vestido observava-a, sobre a cama, sem corpo
lançou-se sobre ele
abraçando-o contra si
saiu do quarto a correr, galgou a porta da rua,
percorreu as ruas da cidade
assim...
nua, como quem voa,
abraçada ao seu vestido de seda
selvagem
...

https://www.youtube.com/watch?v=HsHKWGHkH0M

domingo, 27 de julho de 2014

crónica da descartabilidade heterossexual

...

Engoli um analgésico, peguei na última nota de vinte euros e pintei-me de modo a tapar todo o esforço que estava a fazer. Se uma amiga faz anos e me convida, é importante para mim não lhe faltar. Eu ficaria triste se me faltassem sem um bom motivo, principalmente se ninguém aparecesse como eu suspeitava que lhe iria acontecer. 
Amigos são assim, às vezes não conseguimos suportá-los, não temos pedalada para as mesmas coisas… às vezes magoam-nos. Mais tarde percebemos que provavelmente não estamos isentos de culpa e lembramo-nos da importância da amizade, da gestão da imperfeição de todos nós, procuramos um equilíbrio, mesmo que frágil.
Conversámos, conversámos sobre temas inócuos, até que, inevitavelmente chegámos ao tema “amizade”. É aqui que quero chegar. E arrependo-me, arrependo-me de ter ouvido a opinião dessa amiga, que me diz que para ela as amizades passam, são temporárias, puf… acabam e não quer mais saber disso, os amigos vão e vêm…

Que homens me digam que não querem nada mais que uma curta aventura, ou que o façam entender, que depois cada um vai à sua vida… a isso não só já me habituei como me tornei adepta. Mas com uma mulher, uma amiga, ou que julgava eu ser amiga, pergunto-me, qual é o objectivo? O que estou ali a fazer? É que nem sequer uma contrapartida sexual está em questão…

...

Da existência exclusiva em horário de expediente


já disse e volto a dizer
quero morrer num sábado
assim, sem incomodar
se morrer num sábado
ninguém dará pela minha falta
evitam-se as homenagens fúnebres
e a compra apressada das flores
que nunca antes recebi
só a partir de segunda-feira
vão dar pela minha falta
não vou atender o telefone
não vou responder ao email
não vou ver a conta bancária
nem fazer transferências
talvez nem pague a conta da luz
e terão que a vir cortar
e a renda
a renda ficará por pagar,
a roupa por estender,
não lembrarei os outros
dos assuntos que devem ser eles a lembrar
e não vou actualizar o status do meu facebook
porque não vou cá estar para o ler
e confirmar que minutos antes
estava suficientemente viva

para o escrever

domingo, 20 de julho de 2014

defunctorium


...

Estou de luto

De luto pela humanidade

Envergonha-me tanto sangue derramado
Tanta criança assassinada
Vidas sem amanhã
Pessoas reduzidas a cinzas
Tanto ego exaltado
Tanto luxo para tão poucos

E o poder
O poder nas mãos de falsos deuses

Empunhando os seus talheres de prata
Degustando em copos de cristal
As lágrimas dos que ficam e esperam

A sua hora

…Talvez depois da sobremesa

Estou de luto
De luto por mim, por nós todos
Por pactuarmos em  silêncio, obtusos e impotentes
Com o dizimar de todo um futuro

... Enquanto não mudamos de canal

...