domingo, 15 de dezembro de 2013

re de coração

...

Casaco comprido, cinzento de olhar, coçado e gasto a condizer com o rosto, Belinda senta-se no seu banco do jardim de todos. Arruma à sua volta os sacos, as mantas e os trapos. Se não chover, será ali que irá pernoitar.

A noite espreita. O burburinho do trânsito desvanece-se. Os transeuntes aceleram o passo, fogem do sol - pôr, como se ser surpreendido pela noite, ainda fora de casa fosse uma praga, uma maldição. Há que fugir e depressa, não vá a escuridão abater-se sobre os sacos de compras e os seus laços brilhantes, não vá o brilho caro esmorecer.

Belinda ajeita-se. Nidifica naquele banco. Torna-o a sua casa. Observa as árvores, seu tecto.

Devia mandar pintá-las de outra cor, já me cansa este verde. Ou podia pendurar-lhes umas estrelas.

Passa um homem, baixo, agasalhado até ao nariz e apressado, muito apressado. As mãos nos bolsos empurravam o sobretudo à sua frente.

Amigo, assim o sobretudo chega a casa primeiro que tu!

Belinda julgou ter pensado, mas não pensou, disse. Apesar de não se ter ouvido a si mesma. Pois se o homem lhe respondeu, foi porque o pensamento se fez voz, sem a sua autorização.

Amigo?! Felizmente nunca o fomos. 

Resmungou, prosseguindo a sua corrida para fora da noite, à velocidade da resposta.

Nunca se sabe, amigo. Sabes lá se não fomos amigos em tempos! Por acaso não te lembras de mim? Ora olha bem para mim e responde.

O homem pára, olha o enorme trapo cinza.

Não me parece. Não tenho amigos que tenham acabado assim.

Assim como?

Assim, nessa miséria! 

A própria articulação da palavra custou-lhe, pareceu cuspir o som.

Achas que me acabo na minha miséria? Não sejas melodramático, amigo! Não é nos meus pertences nem na sua ausência que me acabo. Anda cá. Senta-te aqui ao pé de mim.

O pequeno homem olha em volta, não vá ser visto por alguém. Engole em seco, respira fundo, fecha os olhos e abre-os de novo, atreve-se. Senta-se ao lado de Belinda. por precaução não a olha, finge-se indivíduo, ali sentado, olhar fixo, em frente, para coisa nenhuma.

Belinda olha-o, divertida com a atrapalhação, feliz por uma companhia ali, a menos de meio metro de si mesma.

Amigo, olha para cima. Olha estas árvores. Tens árvores? Eu tenho, são o meu tecto. Até estou a pensar fazer umas melhorias... redecorar a minha casa. Ajuda-me. Fecha os olhos e imagina estrelas, sim, como aquelas lá longe, só que estas vão estar aqui, suspensas nos ramos, inventadas por nós dois. Por cima de nós. Consegues sentir o seu calor?

Ele encolhe-se, esperara um discurso absurdo, mas não deste género. Deixa-se levar, imagina-se banhado pelo brilho das estrelas acabadas de acender por aquela mulher estranha. Mantém os olhos fechados, parece até sorrir.

Belinda observa-o, enternecida.

Agora abre os olhos e olha para os meus. Isso... olha bem. Diz-me se vês aqui alguma miséria.

Embargado, acena que não. Mergulha no olhar de Belinda e deixa-se levar. Flutua nas ondas daquele mar de Inverno, rumo a um mundo desconhecido.

Belinda acorda-o do torpor e pede uma resposta.

Concordas com o que te disse?

Não tenho outro remédio... 

...




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