quinta-feira, 22 de julho de 2010

A ceia

Não durmo, dói-me a noite. Saio de casa em direcção a nada. O ar fresco queima-me as entranhas, os raros sons da noite estalam-me no cérebro como achas de fogueira. Entro num restaurante que nunca tinha visto, algum alivio como entrada: as luzes suaves, os odores a maresia, o som das ondas... Tropeço num menu abandonado: o prato do dia é morte súbita, recomendado pelo chef é a morte lenta acompanhada de paz e tranquilidade. Posso escolher a morte súbita, sendo prato do dia, está pronta a sair e não terei tempo de me aborrecer. Quando me for apresentado o prato, o espanto ficará no meu rosto, para sempre. Pode não ter um bom resultado final, ser lembrada com ar de espanto... no entanto, foi sempre com espanto que vivi: espanto pela beleza das coisas, espanto pela descoberta de que afinal tudo pode ser tão simples. Não me parece mal. Por outro lado, o prato recomendado pelo chef, a morte lenta, com paz e tranquilidade também parece uma escolha razoável. Desde que os condimentos não sejam exagerados, a dor, nem em falta, o discernimento. Mantendo a lucidez perante o prato apresentado, corro o risco de ficar com o medo marcado no rosto. Não mais do que o risco de morrer sorrindo, mergulhada nas recordações, perspectivando um futuro em que não estarei presente mas para o qual contribui à minha medida, vivido e saboreado pelos meus filhos, pelos meus amigos. - É servida? - um vagabundo toca-me no braço com uma sandes de pasta de atum. Acordou-me daquele sonho estranho. Sorri-lhe e agradeci, abracei-o no seu ar de quem já viu malucos para tudo, desprendido. Voltei para casa.

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